sábado, 6 de outubro de 2018

Eleições no Brasil: o voto religioso e a “enorme ameaça” à democracia

Texto de António Marujo



(Milton Nascimento, Missa dos Quilombos - Estamos Chegando
poema disponível aqui)

Neste domingo, 7 de Outubro, mais de 147 milhões de eleitores brasileiros são chamados a votar na primeira volta das eleições presidenciais. Em muitos sectores, cresce a inquietação com a possibilidade de vitória do candidato Jair Bolsonaro, do PSL (Partido Social Liberal), que tem defendido posições misóginas, armamentistas, racistas e anti-ambientais. A sua eleição representa uma ameaça “enorme” à democracia brasileira, escrevia The Guardian quinta-feira, dia 4, e o “risco impensável'” de que ele se torne Presidente do Brasil passou a ser real.
Nestas eleições, há muitos factores em jogo. Os graves casos de corrupção, que nunca desapareceram do país e continuaram durante os governos do Partido dos Trabalhadores, a violência social e as fortes desigualdades sociais (atenuadas durante a presidência de Lula da Silva) são apenas algumas delas. O voto de evangélicos e católicos e a influência das redes sociais na dinamização das pessoas e na propagação de mentiras são, por outro lado, alguns dos elementos determinantes que podem fazer pender a eleição para um lado ou outro. 
O recenseamento de 2010 identificou 86,8 por cento dos brasileiros como cristãos. Destes, 22,2 por cento (cerca de 43,3 milhões de pessoas) são evangélicos. O crescimento dos últimos anos permite, no entanto, prever que, em 2020, possam tornar-se a maioria dos cristãos.
 “O crescimento [dos evangélicos] tem sido atribuído, por vários estudos com as mesmas conclusões analíticas, ao facto de que as igrejas evangélicas estão em locais em que o Estado não chega com suas políticas básicas”, diz ao RELIGIONLINE Jane Maria Vilas Bôas, assessora de imprensa da candidata Marina Silva. 
A mesma responsável acrescenta: “Os pastores (das diferentes comunidades e grupos) têm sido as referências de assistência social em locais muito pobres. Além disso, o corpo eclesiástico das igrejas evangélicas tem sido formado com pastores oriundos da própria população local. Assim, essa expansão demográfica também significa expansão da capacidade de influenciar qualquer processo social da sociedade brasileira, inclusive as eleições presidenciais.”

Marina Silva e o poder das mulheres

Uma das questões para este domingo está, então, em saber se o voto evangélico (e, por extensão, o católico) pode ser um factor decisivo na escolha do eleitorado. Jane Maria contesta o pressuposto da designação: “Os evangélicos no Brasil se distribuem em 36 denominações. Considerando essas diferentes práticas e doutrinas, é um pouco difícil definir ‘voto evangélico’.” 
De qualquer modo, há apoios declarados da Confederação dos Conselhos de Pastores do Brasil e do líder da poderosa Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, a Jair Bolsonaro. Do lado contrário, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (que reúne as igrejas do protestantismo histórico, minoritárias no campo não-católico) tomou uma posição contra o candidato do PSL. No texto, fala-se da “fragilidade” da democracia no Brasil, de uma elite interessada “apenas em produzir e manter as desigualdades” e que “tende a sonegar impostos, não aceitar taxar as suas fortunas e eximir-se de suas responsabilidades sociais” e da “futebolização” da política “que aniquila a busca e a realização do bem comum”. 
Numa Carta Pastoral à Nação Brasileira, posta a circular em Setembro, mais de 2300 líderes evangélicos e protestantes, incluindo teólogos, pastores, professores, repudiaram o que consideram a tentativa de Bolsonaro de usar os grupos neopentecostais e “manipular o nome de Deus”. “Cremos num Deus grande o suficiente para não se deixar usar por formas anticristãs de pensamento e de ação”, diz o texto da carta, que afirma também a “indignação contra toda pretensão de haver um governo exercido em nome de Deus, bem como contra toda aspiração autoritária e antidemocrática” e a “firme convicção de que o nome de Deus não pode ser usado em vão, ainda mais para fins políticos”, para concluir: “Recomendamos, enfaticamente, que se desconfie de qualquer tentativa de manipulação do nome de Deus.”
Com todas estas movimentações, não é de estranhar que várias sondagens feitas em Setembro indicassem que 33 por cento dos evangélicos votam em Bolsonaro. Na passada terça-feira, dia 2, uma nova sondagem estimava em 32 por cento os eleitores que o escolhem. “Diria que a escolha por esse candidato tem mais a ver com uma expectativa política comum do que à identidade de fé entre seus eleitores”, conclui Jane Vilas Boas. 


(Milton Nascimento, Missa dos Quilombos - Ofertório
poema disponível aqui)

Marina Silva tem sido, para vários sectores, a esperança de uma solução que alia as preocupações sociais e ambientais à moderação e equilíbrio, mas desligada dos casos de corrupção em que vários dirigentes do PT se envolveram. Mas a estratégia de campanha pode não estar a resultar, como analisa Moysés Pinto Neto, apoiante de Marina em 2014 e que tem historiado a intervenção da candidata
Alfredo Abreu que, enquanto presidente do Serve the City em Portugal, tem acompanhado o lançamento, no Brasil, desta rede de voluntariado já presente em 80 cidades, tem participado em fóruns de discussão sobre o processo eleitoral. E verifica a predominância, também entre evangélicos, do voto útil, em detrimento de candidatos como Marina Silva: “Os evangélicos, quando não aceitam Marina, é porque acham que ela não tem perfil de poder, que é uma pessoa com boas ideias, com boa índole, mas não tem capacidade de poder. Que fala muito no diálogo, no amor na política, numa cultura de paz, mas que, como diz a expressão popular, ‘quem tem a moca na mão é que manda’.”
O responsável do Serve The City, que está presente em Lisboa, Porto e Coimbra, verifica ainda que a política brasileira está “muito bipolarizada” entre a extrema direita e Lula da Silva e o PT: “Quando se entra num debate, as pessoas são puxadas para estar com um ou outro. Marina tem estado a insistir na tecla das mulheres e do poder das mulheres para mudar o Brasil; e muita gente que não entrou no discurso do ódio olha para ela com esperança”, acrescenta. 
O debate sobre a influência do voto religioso na eleição presidencial brasileira tem sido intenso. Depois de, no final de Setembro, Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, ter declarado o apoio a Jair Bolsonaronesta quinta-feira, dia 4, a TV Record – propriedade de Edir Macedo e da Universal – ofereceu o palco a Bolsonaro, retido ainda em casa a recuperar do atentado que sofreu: enquanto os restantes candidatos debatiam na rede Globo as suas propostas, Bolsonaro era entrevistado na Record. Diz o El Paísque o capitão reformado do exército não teve de enfrentar perguntas difíceis e que mentiu em pelo menos dois momentos, sobre declarações machistas, racistas e homofóbicas por ele proferidas. 
São essas opiniões que levam The Guardian, no editorial já citado, que designar o candidato como “Trump da América Latina, como alguns fizeram, é ser gentil demais”, pois “Bolsonaro é um misógino e homofóbico cujas opiniões sobre comunidades indígenas e o ambiente são muito sombrias”, ao mesmo tempo que “elogia ditadores e a ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985” e que já defendeu “tiros contra seus oponentes”. 

Uma “matriz cristã radical fundada no medo”

Luís António Santos, professor na Universidade do Minho, recordou, no final da semana passada, na Renascença, que a mensagem do Papa Francisco na rede Twitter desse dia dizia: “Rezemos para que no mundo prevaleçam os programas de desenvolvimento e não aqueles para os armamentos.” 
Ao contrário do que é habitual, em que um tweet do Papa tem, em média, duas mil a três mil repetições, desta vez ela chegou às 18 mil e teve mais de mil comentários. E cita alguns dos “mais brandos”: “Papa eu sou católico roxo que pratica a leitura bíblica, em Mateus cap. 10 vers. 34 Jesus fala que veio trazer a espada, que hoje simboliza a arma atual, não dá pra enfrentar o terrorismo com pombas brancas e cantando imagine do John Lenon!!!”; “Fala da Venezuela Papa esquerdista”; “Pela Família, pela Paz! Porém com o direito de defendê-la contra os bandidos que estão armados na rua. Bolsonaro é Deus, Pátria e Família. Como está a situação na Venezuela Papa?”; “É melhor votar num armamentista ou num abortista?”.
O académico comenta: “São vários os apontadores de espanto para os quais este insólito episódio nos remete. O primeiro é a assustadora situação de proto-guerra civil que se vive nas redes sociais brasileiras, da qual conseguimos ter aqui um pequeno vislumbre (uma situação potenciada por enormes investimentos na criação e circulação de falsas narrativas, ou mesmo em acções de ‘terrorismo’ digital – como a usurpação de identidades ou o ‘assalto’ a grupos de Facebook, por exemplo). O segundo é a força política de uma narrativa religiosa radical de matriz Cristã fundada no medo e apoiada em leituras muito discutíveis dos textos sagrados. (...)”
Sobre a “matriz cristã” radical do voto, Danillo Silva, professor de Língua Portuguesa e Linguística em duas instituições universitárias, pergunta: “Qual a coerência ética e moral de justificar o voto em Jair Bolsonaro, em razão de sua suposta defesa de valores evangélicos como ‘a vida’, se tal defesa restringe-se apenas a defesa da vida do nascituro ante a questão da descriminalização do aborto, mas desconsidera uma gama de outras formas de atentado à vida, como as inúmeras apresentadas neste texto? A defesa da vida é uma postura integral. Ou defendemos todas as vidas de todas as pessoas, em todos os seus estágios e independentemente de suas condições sócio-económicas, ou não defendemos a vida, mas barganhamos seu direito, o direito de viver e viver com abundância.” 


(Milton Nascimento, Missa dos Quilombos - Comunhão
poema disponível aqui)

Liderança católica “lava as mãos”...

Outro problema, analisa Juan Arias na edição brasileira do El País, é que, enquanto muitos pastores evangélicos apelam ao voto num “candidato que prega a violência como panaceia para todos os males”, a liderança do episcopado católico lava as mãos e não tem a “coragem de assumir uma posição clara sob a desculpa de que a Igreja ‘não se pronuncia sobre candidatos’”. 
É verdade que a Confederação das Religiosas do Brasil (CRB) tomou posição contra o voto em Bolsonaro: “Não podemos votar em candidatos que pregam abertamente a violência, como solução para a segurança pública. E não faz parte de nossas escolhas apoiar aqueles que, sem nenhum pudor, discriminam as mulheres, os afrodescendentes, os indígenas, os pobres e as crianças”, diz o texto assinado pela presidente da CRB, a irmã Maria Inês Ribeiro
Também o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cardeal Sergio da Rocha, afirmara já em Fevereiro que os bispos católicos preferem “candidatos comprometidos com a justiça social e a paz” e que não “promovam ainda mais a violência”, mas o conselho permanente da CNBB veio declarar que “não se pronuncia sobre candidatos e/ou partidos”. 
A propósito destas posições, comentava Juan Arias: “Se Cristo voltasse, ficaria, certamente, surpreso com a notícia publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, de que a Confederação dos Conselhos de Pastores do Brasil decidiu apoiar a candidatura do capitão reformado Jair Bolsonaro, sob o pretexto de frear uma possível vitória da esquerda. Os evangélicos, como todos os cidadãos, têm o direito de preferir um candidato de esquerda ou de direita. Eles são, no entanto, seguidores do profeta que morreu por defender todas as minorias perseguidas em seu tempo e que se recusou a ser defendido por seus discípulos com a espada. Não poderia, por isso, abençoar aqueles que não só pregam a violência e até mesmo o extermínio dos inimigos, mas também fazem alarde sobre isso.”
Apesar do silêncio público, a diocese do Rio de Janeiro promove este mesmo sábado uma jornada de oração intitulada “Brasil com fé”. Atitudes que contrastam com tempos em que os bispos, como Hélder Câmara, Paulo Arns, Pedro Casaldáliga, Aloíso Lorscheider, Mauro Morelli e muitos outros lideravam o processo de defesa das populações mais desfavorecidas do Brasil e juntavam oração e intervenção pública:


(Milton Nascimento, Missa dos Quilombos - Invocação à Mariama,
poema disponível aqui)

... mas o voto evangélico é “orgânico”

A “bancada evangélica” já representa 15 por cento dos deputados federais. “O voto evangélico é muito orgânico, no sentido de que os pastores e bispos têm uma relação com os seguidores que influencia como eles votam”, dizia, no La Croix International,António Lavareda, que tem estudado a política brasileira. “É o oposto da Igreja Católica, onde, apesar de ter mais fiéis, os padres têm menos influência directa.”
O texto cita ainda declarações do pastor Silas Malafaia à Associated Press, depois de ter ajudado a eleger 25 deputados e cinco senadores, apoiado pelas mais de 50 igrejas sob sua jurisdição: “Eu ajudo os candidatos a serem eleitos emprestando-lhes minha imagem e palavras.” Agora, Malafaia apoia Bolsonaro: “No Brasil, precisamos de um machão como ele... para defender todos os valores e princípios da família católica.” 
A influência desta bancada tem sido visível em vários temas debatidos no Congresso. Desde 1986, quando alguns evangélicos entraram na Assembleia Constituinte por receio de que o Estado devolvesse à Igreja católica antigos privilégios, a sua influência não tem parado de crescer – hoje são 75 deputados federais e três senadores, que votam sempre coesos.  
Em 2015, uma das decisões onde essa unidade do voto religioso se verificou foi na antecipação da maioridade penal para os 16 anos, em casos de crimes hediondos, impulsionada por Eduardo Cunha, um dos principais nomes da “bancada evangélica”. Ronaldo Almeida, professor de Antropologia, comentava a propósito que o Brasil vive um conservadorismo que se revela em três sentimentos: o ódio (contra o diferente), a fobia (o medo leva à aprovação de leis mais permissivas no porte de armas) e a vingança (antecipação da maioridade penal).

Discurso de ódio nas redes sociais


(Projota, Pra não dizer que não falei do ódio
poema disponível aqui)

O discurso do ódio tem sido fomentado no Brasil, como também já aconteceu em outros países e circunstâncias, pelas redes sociais. “É comum, em especial na discussão feita dentro das redes sociais, encontrar comentários que dizem respeito ao contexto político carregados de ofensas, palavrões e intimidações. É o discurso de ódio emergindo na crista de uma onda conservadora que avança em todo o mundo”, analisava Carol Scorce, na CartaCapital. 
Nesse crescimento do papel das redes sociais, tem aumentado também o número de jovens que entram no debate político, mas de forma distorcida: “No final, é uma fala cheia de desinformação e preconceito, e extremamente perigosa para uma democracia. Não se fala hoje que o Holocausto foi uma coisa boa, mas nas redes tem gente propagando isso. Isso é feito para ancorar o ódio e a dominação contra determinados sujeitos da sociedade.”
Compreender porque é que tantos jovens se aproximam destes discursos do ódio é um dos primeiros passos necessários para o contrariar. O desencanto com a política é uma das razões, como se conta numa reportagem da BBC Brasil, em que uma das jovens ouvidas diz, sobre Bolsonaro: “Ele não fala nada para agradar o povo, ou para parecer politicamente correcto.” 
A utilização das redes sociais pelos candidatos – e, no caso, por Bolsonaro – pode ser um argumento a favor dessa sedução (no final de 2017, os eleitores brasileiros com acesso frequente à internet representavam 68 por cento do total de eleitores; e 90 por cento dos eleitores de Bolsonaro tinham acesso à rede).
Moysés Pinto Neto, que é também professor de filosofia da Universidade Luterana do Brasil, diz que Bolsonaro criou um personagem mediático que joga com a incerteza sobre o tom do que diz: num vídeo de 1999, ele dizia que mataria pelo menos 30 mil pessoas no Brasil. “Ele está falando sério ou não? Não dá pra saber”, diz o académico, que tem estudado também o modo como os movimentos sociais de direita actuam nas redes sociais.

A sedução e os reis do agronegócio

Não é de estranhar que, neste processo de sedução, o voto de muita gente se transfira directamente dos que antes escolheram Lula da Silva (ou Dilma Rousseff) para Bolsonaro. Esther Solano, professora na Universidade Federal de São Paulo, analisa o facto de muitos eleitores verem coerência entre o seu voto anterior e o actual: a busca de “alguém forte que bote ordem na casa” ou uma “reelaboração da memória”, que leva a esquecer o papel dos governos de Lula na ascensão social verificada por muitas pessoas e que hoje apenas atribuem esse facto ao seu mérito pessoal
Outros dos fortes apoios recenseados por detrás do candidato de extrema-direita é o de saber quem financia Bolsonaro e a sua campanha milionária. As empresas de mineração, o agronegócio e a indústria do armamento serão alguns dos sectores económico-financeiros que estarão interessados na sua eleição, de acordo com este trabalho da Rede Brasil Atual
Foi precisamente contra o poder cada vez mais imenso da indústria do agronegócio que Chico César compôs uma das músicas do seu último disco, Estado de Poesia, com um longo poema em que descreve de forma cáustica o processo político, económico e social ligado a essa indústria:


(Chico César, Estado de Poesia - Reis do Agronegócio
poema disponível aqui)


Sem comentários: