Nos balanços de década que (quase) todos os media fizeram, o preconceito veio mais uma vez ao de cima: a dimensão do fenómeno religioso foi ignorada pela maior parte. A excepção eram vagas referências ao islão - a propósito, apenas, dos atentados de grupos fundamentalistas. Nem mesmo o facto de ter morrido o Papa mais mediático da história católica; de se terem multiplicado iniciativas inter-religiosas num movimento sem precedentes na história; de vários grupos cristãos, muçulmanos, judeus e outros mobilizarem milhares de pessoas para se encontrarem ou para apoiar pobres, vítimas de tragédias e outros injustiçados - nem mesmo estes factos mereceram qualquer referência nestes viciados balanços. No Público de 31 de Dezembro, uma das "palavras da década" escolhidas foi "Deus". Aí procurei fazer uma pequena síntese de como o religioso continua a ser uma referência essencial para muitas pessoas. Mesmo se esta obtusa forma de jornalismo só se dá conta disso de vez em quando. Fica aqui o texto:
Uma palavra apareceu sob as cinzas dos atentados de 11 de Setembro: Deus. A motivação religiosa invocada pelos terroristas foi condenada por todas as religiões. "Patologias e doenças mortais da religião", diria o Papa Bento XVI, cinco anos depois, em Ratisbona, numa viagem que levaria milhares de muçulmanos a manifestar-se contra a frase, citada pelo Papa, em que se falava de Maomé como portador de "coisas más e desumanas".
A década foi marcada por outros factos em que a dimensão pública da religião, depois da "morte de Deus", (re)apareceu em força. Os cartoons de Maomé motivaram reacções de muçulmanos. O carisma, as viagens e o funeral, em 2005, do Papa João Paulo II atraíram milhões. O debate sobre a herança cristã da Europa, a propósito do tratado constitucional, teve momentos polémicos.
Mas também houve líderes e crentes de diferentes religiões unidos pela paz (encontros de Assis) ou no apoio a vítimas da pobreza, perseguições e catástrofes. Em Portugal, Fátima viu crescer a atracção do lugar simbólico para cinco milhões por ano, cem mil mobilizaram-se para escrever a Bíblia Manuscrita e a comunidade monástica de Taizé trouxe a Lisboa, há cinco anos, 40 mil jovens de toda a Europa - onde 67 por cento se afirmam "pessoas religiosas" e 51 por cento frequentam um serviço religioso.
O sociólogo da religião Thomas Luckmann, que há 40 anos falou da "religião invisível", diz que a religião passou a ser individual. E que essa é uma "componente estrutural nas sociedades americana e europeia". "O religioso nunca se foi embora, só mudou a sua face." Deus continua a estar em toda a parte.
(Foto: participantes no Parlamento das Religiões do Mundo, realizado na Austrália no início de Dezembro de 2009; foto de Ray Messner retirada de http://www.flickr.com/photos/raymessner/sets/72157622833738969/
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