Pode o corpo ajudar à
oração? Pode haver sensualidade nos modos de rezar? Saberá o corpo rezar melhor
que a alma? É possível pôr deficientes ou idosos a rezar através dos afectos? E
o que pode um beijo? Ou o que têm em comum um sermão de Bernardo de Claraval
sobre o Cântico dos Cânticos, uma tela como a Conversão de São Paulo, de
Caravaggio (ao lado), o Êxtase de Santa Teresa, de Bernini, ou Bill T. Jones a dançar a
Chaconne?...
As III Jornadas de
Teologia Prática, sobre “sentidos, práticas e figuras orantes”, que esta
sexta-feira decorreram na Universidade Católica Portuguesa (UCP), em Lisboa, provocaram
o debate sobre o lugar do corpo na oração.
“Deus passa pelo corpo,
por um corpo encarnado. E é nesse corpo que tenho que viver a oração”, disse Helena
Presas num dos painéis. Catequista no Campo Grande (Lisboa) e animadora de um
grupo de oração para idosos, Helena Presas destacou o valor dos afectos na
experiência da oração: “Muitas destas pessoas já não têm afectos há anos. Ou
nos entregamos a Deus e deixamos que a Palavra de Deus nos encha de alegria ou
o que está à frente é o sofrimento, o vazio, a doença e a morte.”
Responsável do Movimento
Fé e Luz, que trabalha com pessoas com deficiência, Alice Caldeira Cabral falou
da necessidade de acolher os limites e de tornar os sacramentos acessíveis a
todos. E destacou igualmente as linguagens do corpo na oração: o gesto, o
toque, os silêncios, as músicas, os símbolos e a participação activa são
aspectos fundamentais para a oração. Helena Presas acrescentou, a propósito do sentido
de pertença: “Hoje, na cidade, as pessoas não pertencem a coisa nenhuma; e
mesmo na Igreja pertencem muito pouco.”
O que pode um beijo?
Num outro painel, Paulo
Pires do Vale, professor da UCP e da Escola Superior de Educação Maria Ulrich, referiu-se
à oração como “hospitalidade carnal”, citando a tela de Vermeer, Cristo em Casa
de Marta e Maria. Esta dimensão vai mais fundo, “como uma penetração no próprio
corpo”, numa obra como o Êxtase de Santa Teresa, de Bernini, acrescentou. No
texto que dá origem a esta obra, Santa Teresa fala de “uma lança de fogo, que
repetidamente [se] cravava no [seu] corpo e penetrava o [seu] coração”. Uma
linguagem que remete para metáforas de natureza sensual e sexual – de tal modo
que os confessores pediram a Teresa d’Ávila que não as referisse.
Paulo Vale perguntou,
com Espinoza e Deleuze: “O que pode um corpo?” Para responder, citando o filósofo: “A
alma e o corpo são uma só e a mesma coisa; ninguém determinou até ao presente o
que pode o corpo; o corpo, só pelas leis da sua natureza, pode muitas coisas
que causam espanto à própria alma.” O corpo, acrescentava Paulo Vale, “sabe
primeiro que nós” o que se passa, por exemplo nos sintomas de uma doença ou no modo como nos relacionamos com alguém de quem gostamos, mesmo antes de termos consciência dessa paixão...
Saberá então o corpo
rezar melhor que a alma? “O corpo é esse lugar aberto onde o mundo e os outros
se tornam a nossa própria carne. Antes de nos mostrar que somos finitos, mostra
que somos abertos.” Bataille, acrescentava Paulo Vale, fala do erotismo como a
negação do fechamento.
E o que pode um beijo? Num
sermão sobre o Cântico dos Cânticos, São Bernardo explica acerca da primeira
frase daquele livro bíblico (“Beija-me com um beijo da tua boca”): “O verbo que
encarna é a boca que beija; a carne que ele toma é a boca que recebe o beijo; o
beijo que se forma sobre os lábios é a pessoa de Jesus Cristo, mediador entre
Deus e os homens.” Bernardo sugeria o beijo nos pés, nas mãos e na boca como símbolo da progressão espiritual.
A importância do corpo na oração, para lá de todos os discursos, parece exigir, como nas palavras de Rainer Maria Rilke, "muda a tua vida", concluía Paulo Vale.
Liturgias rigorosamente
coreografadas
Professora na Escola
Superior de Dança, Maria José Fazenda referiu-se aos rituais litúrgicos como
“rigorosamente coreografados”.
Fazendo um percurso
pelos dois últimos séculos da história da dança, falou da “metáfora do desejo
de ascender” presente no bailado romântico, na comunhão do corpo com a natureza
que Isabora Duncan pretendeu ou dos próprios corpos na oração, como no uso de um
canto gregoriano por Ruth St Denis. Ou ainda na descida à terra que o corpo
masculino propõe, como nos bailados de Ted Shawn.
O corpo pode ser esse
lugar que oscila entre o movimento e a redenção. Como na espantosa criação de
Bill T. Jones em “Chaconne”, com música de Bach. Uma peça inspirada, aliás, na
experiência do próprio compositor, quando um dia chegou a casa e teve a notícia
de que a sua mulher morrera. “Quando a deixei ela estava muito fraca. Tudo o que ela queria era cantar. Canta.”, propõe a coreografia de Jones [no vídeo a seguir, cedido por Maria José Fazenda a partir do DVD "Chaconne", realizado por D. Kent e editado por Bel Air Media (2008), pode ver-se um excerto do final dessa criação; para outras notícias sobre as jornadas, ler aqui e aqui].