Depois de Maio,
podemos voltar a parte do muito que se publicou sobre Fátima e que ajudará a
sistematizar informação e elementos para vários debates sobre o fenómeno, que
importa agora aprofundar.
Hoje, dia em que a
liturgia católica assinala a Assunção de Nossa Senhora e a Igreja Ortodoxa
festeja a Dormição de Maria, trago aqui dois textos sobre a figura da mãe de
Jesus: um, publicado no Público de 7 de Maio (e que, por isso,
tem uma referência final datada); o outro, um texto publicado no número de
Maio/Junho da revista Bíblica. Em ambos, procuro apresentar alguns
elementos sobre o modo como Maria é olhada e venerada e de que modo isso
influencia ou não a fé de tantos crentes (incluindo o Papa Francisco, cuja
relação com Nossa Senhora é também tratada no primeiro texto.
Este é o quarto
trabalho desta série, que incluirá mais dois textos, nos dias 13 de Setembro e
13 de Outubro. Os textos já publicados podem ser lidos nestas ligações:
PAPA
FRANCISCO: DEVOTO DE MARIA, MAS NÃO MARIANO
Maria
é importante no cristianismo? E a que ponto? Há uma forte presença da mãe de
Jesus na teologia, na vida dos crentes – e dos Papas. Mas o entendimento do seu
lugar no dogma cristão tem sido objecto de debates e muitas polémicas. Aqui se
recordam alguns desses episódios e se tenta perscrutar o entendimento do Papa
Francisco sobre a figura da mãe de Jesus.
O Papa Francisco no Santuário de Fátima, a 12 de Maio último
(foto reproduzida daqui)
Na
primeira metade do século VIII, São João Damasceno, um dos mais importantes
teólogos cristãos do primeiro milénio cristão, escrevia que “Maria é a primeira
das novas criaturas”.
Com
essa afirmação, queria destacar o papel da mãe de Jesus na configuração da fé
cristã. Mãe de Cristo e irmã dos crentes, primeira seguidora e discípula do seu
filho, protectora e advogada de quem a ela recorre, Maria de Nazaré pode ser
também arquétipo da figura da mãe, da presença do feminino na antropologia e
figuração da deusa-mãe. A sua personalidade é, desde o início do cristianismo,
venerada em diferentes graus, a ponto de ter sido proclamada pelo Concílio de
Éfeso, em 431, como Theotokos –
literalmente, “portadora de Deus”, ou seja, mãe de Deus.
O
catolicismo e o cristianismo ortodoxo (predominante no leste europeu e no Médio
Oriente) herdaram esse entendimento e essa veneração. Ao contrário do
protestantismo, que se afastou daquilo que considerava os desvios e exageros da
tradição católica.
Característica
da identidade católica, a veneração a Maria é, no entanto, objecto de debates,
divergências, opiniões diferentes – mesmo no interior do catolicismo. Esses
diversos graus de adesão e as distintas expressões de linguagem utilizadas
manifestam também, quase sempre, modos de ver e de se relacionar com a mãe de
Jesus muito díspares.
O
Papa Francisco não foge à regra: devoto da figura de Nossa Senhora, ele afirma,
desse modo, a sua absoluta identidade católica. Mas, vindo da América Latina,
ele dá a essa devoção uma configuração que não coincide completamente com
algumas tradições. E que, se acentua a dimensão popular da irmã e companheira
que apoia e auxilia os crentes, também afirma em permanência a centralidade de
Jesus e do seu evangelho como fundamentos da fé cristã. Maria é, nesta
perspectiva, tomada como a primeira seguidora de Jesus e a referência dos
crentes.
A
desatadora dos nós e a ternura para ajudar
No
modo como Francisco se relaciona com a figura de Maria contam, desde logo, os
gestos iniciais: na primeira manhã depois de eleito, o novo Papa dirigiu-se à
basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Ali, Inácio de Loiola, fundador dos
jesuítas, a ordem a que pertence Jorge Mario Bergoglio, celebrara a primeira
missa de Natal, em 1538. Mas Bergoglio, agora Francisco, não foi lá por causa
do fundador da sua ordem, antes para rezar e colocar um ramo de flores. Era a
sua forma de saudar a imagem conhecida como Salus Populi Romani, a
protectora do povo de Roma.
Nossa Senhora Desatadora dos Nós,
a imagem preferida do Papa Francisco
A
invocação que Bergoglio/Francisco prefere, no entanto, é outra: Nossa Senhora
Desatadora dos Nós, uma representação pictórica que ele viu na Igreja de St.
Peter am Perlach, em Augsburgo (Alemanha), quando lá viveu, a partir de 1986,
para fazer a tese em teologia. Numa pagela que o então padre e, depois, bispo
Bergoglio passou a distribuir às pessoas, a imagem de Nossa Senhora Desatadora
dos Nós era apresentada como alguém capaz de desfazer “todos os nós do coração, todos os nós da consciência”, todos os nós “da
vida pessoal, familiar e profissional, da vida comunitária” que “as mãos bondosas de Maria vão desatando um a um.”