segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Lembrar as vítimas do Holocausto

Hélène Berr nasceu em 1921 e morreu em 1945 no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, onde, semanas antes, morrera Anne Frank. Esta rapariga francesa escreveu, entre 1942 e 1944, um diário que dá conta de como Paris foi mudando em consequência da ocupação nazi. Até ao início do ano passado, altura em que foi publicado, sob o título de Journal d’Hélène Berr, apenas um reduzido número de pessoas conhecia este impressionante documento e a sua autora. A Portugal, o Diário chegou em Outubro, trazido pela Dom Quixote.

Sendo judia, Hélène Berr não parece simpatizar com o ideal sionista, que julga “demasiado estreito”. Não consegue, aliás, ter o sentimento de pertença a qualquer grupo. “Sofro por ver o mal abater-se sobre a humanidade; mas como não sinto que faça parte de nenhum grupo racial, religioso, humano (porque isso implica sempre orgulho), não tenho para me sustentar senão os meus debates e as minhas reacções, a minha consciência pessoal”, escreve ela no dia 31 de Dezembro de 1943.

O Diário testemunha eloquentemente a ferocidade crescente do ocupante da capital francesa. No dia 10 de Julho de 1942, por exemplo, Hélène Berr regista que os judeus deixaram de ter o direito de atravessar os Champs-Élysées. O impedimento resultava da nona ordenança alemã, que estabelecera, no dia anterior, que os judeus não poderiam, doravante, entrar em cinemas, teatros, museus, bibliotecas, estádios, piscinas, jardins públicos, restaurantes e salões de chá. Nos grandes armazéns ou nos estabelecimentos comerciais, haveria uma permissão de acesso, mas apenas entre as 15 e as 16 horas.

Esta rapariga de vinte e poucos anos vai também anotando a reacção dos parisienses ao terror que se vai instalando, à tragédia pressentida. Num sábado de Julho, observa “a simpatia das pessoas na rua, no metro” ou “o olhar franco dos homens e das mulheres, que enche o coração de um sentimento inexprimível”. O que vê dá-lhe a consciência de ser superior aos “brutos” que a fazem sofrer e de estar unida “aos verdadeiros homens e às verdadeiras mulheres”.

Nesse sábado, o pai de Hélène Berr encontrava-se detido. O pretexto tinha sido a circunstância de a estrela amarela, que todos os judeus, desde os seis anos de idade, eram obrigados a usar desde 29 de Maio de 1942, não se encontrar bem cosida. Tinha sido fixada com o recurso a agrafes e molas para poder ser colocada em todos os fatos, não se cumprindo assim a oitava ordenança alemã que estabelecia que a estrela contendo a inscrição “Judeu” teria de ser solidamente cosida.

No dia 18 de Setembro, Hélène Berr refere uma nova detenção por causa da estrela: “O Dr. Charles Mayer foi preso porque usava a estrela demasiado acima...” As leis alemãs, “ilegais e obra do capricho”, anota a jovem francesa, são “um pretexto para prender, é este o seu único objectivo”. Todavia, a estrela colocada demasiado acima do sítio indicado suscita a uma senhora que repara no que se passa um comentário de uma elucidativa estupidez: “Isso prova verdadeiramente a má-fé deles!!!”. A tal senhora, numa curta afirmação, invertia a realidade e transformava uma vítima inocente num culpado por premeditação e tendência. Se a crueldade do ocupante alemão não é causa de espanto, o comportamento dos parisienses é, amiúde, surpreendente, umas vezes, pelos gestos bondosos e inesperados; outras, pelas atitudes mesquinhas ou vis.

Às vezes, Hélène Berr sente-se incomodada com a indiferença de certos católicos perante o sofrimento dos judeus. Uns acreditam na vinda do Messias, outros continuam à espera dele, escreve a jovem, acrescentando: “Mas o que fizeram eles do Messias? Continuam tão maus como antes da sua vinda. Crucificam Cristo todos os dias. E se Cristo voltasse, não teria ele de responder com as mesmas palavras? Quem sabe se a sua sorte não seria a mesma?”

O Diário termina no dia 15 de Fevereiro de 1944, mas a vida da autora prossegue. Por pouco tempo, é verdade. Em 27 de Março, no dia em que celebrava 23 anos, é deportada com os pais para o campo de concentração e de extermínio de Auschwitz. Após a execução do pai e, a seguir, da mãe, conduzida à câmara de gás no dia 30 de Abril, Hélène Berr é remetida para Bergen-Belsen, onde morre no início de Abril de 1945, dias antes da libertação do campo pelas tropas britânicas. Auschwitz-Birkenau havia sido libertado pelo exército soviético no dia 27 de Janeiro de 1945. No aniversário desta data, por iniciativa da Organização das Nações Unidas, assinala-se, desde 2005, o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.

A efeméride este ano foi marcada pelo eco de uma entrevista de um bispo integrista ao programa Uppdrag gransning (Missão investigação), da televisão pública sueca, exibida dois dias antes de Bento XVI ter anunciado a anulação da excomunhão desse e de mais três bispos ordenados por Marcel Lefebvre. Na ocasião, o prelado negou a existência das câmaras de gás e reduziu absurdamente o número de judeus assassinados nos campos de extermínio ou em outras execuções em massa, tentando, assim, diminuir o carácter hediondo do Holocausto.

No início semana que passou, Bento XVI considerou necessário vir pedir que o Holocausto “seja para todos uma advertência contra o esquecimento, contra a negação ou o reducionismo”, lembrando que “a violência feita contra um só ser humano é violência contra todos”. Ontem, a imprensa revelava que o bispo integrista tinha apresentado “sinceras desculpas” pelo “sofrimento” causado ao Papa pelas suas “declarações imprudentes”. O bispo teimou, portanto, na má-fé. Pediu desculpa pelo incómodo causado a Bento XVI, mas não pela ofensa à memória das vítimas do Holocausto e adjectivou com uma generosidade imprópria as suas infames declarações.

Hélène Berr, que atravessou uma época terrível com uma admirável “doçura de coração”, teria talvez julgado oportuno reler o que escrevera no dia 11 de Outubro de 1943: “Por vezes pensava que estava mais perto de Cristo do que muitos cristãos, e disso eu tive a prova”.

Eduardo Jorge Madureira
[Diário do Minho. 1 de Fevereiro de 2009]

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado antecipadamente e boa sorte, religionline.blogspot.com! :)