quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Onde está Deus nestes dias?

"Onde estava Deus naquele dia?", perguntava, há cinco anos, no início de Janeiro, no Público, a jornalista Alexandra Prado Coelho. O dia referido era 26 de Dezembro de 2004, data da tragédia provocada pelo tsunami asiático. Agora, na sequência de uma outra imensa catástrofe, e como documenta, por exemplo, o cartoon de Erlich, publicado hoje no diário espanhol El País e que aqui se reproduz, indagam-se, de novo, o desígnios divinos. Vale a pena, por isso, recordar o que, em 2005, crentes de várias religiões responderam a Alexandra Prado Coelho.

Deus castigou-nos? Os deuses abandonaram-nos? O karma negativo das nossas vidas é demasiado forte? O fim dos tempos está próximo? O maremoto matou pessoas de todas as grandes religiões mundiais. E, por todo o mundo, os crentes interrogam-se sobre como é possível uma tragédia destas dimensões, atingindo indiscriminadamente pessoas com fé e sem fé, supostos pecadores e supostos inocentes, cristãos, hindus, muçulmanos, budistas, judeus. Num artigo publicado no "Sunday Telegraph", o arcebispo de Cantuária, Rowan Williams, considera inevitável que os fiéis se interroguem sobre a sua fé. Mas pergunta: "Se algum génio religioso surgir com uma explicação de porque é que estas mortes fazem sentido, sentir-nos-iamos mais felizes, mais seguros ou com mais confiança em Deus?".

HINDUS O KARMA NEGATIVO
Para os hindus, a explicação possível para os resultados, em custos humanos, de catástrofes em massa tem a ver com o karma colectivo, diz Ashok Hansraj, relações públicas da Comunidade Hindu de Portugal. Um acidente deste tipo não é uma condenação. E se, entre os muitos que se encontravam no local da tragédia, houve alguns que morreram e outros que se salvaram isso deve-se ao karma de cada um - as vítimas mortais "não tinham acumulado energia suficiente para poderem ser salvas". O karma, o acumular dos efeitos de cada uma das nossas acções, pode ser positivo ou negativo. E por vezes uma pessoa pode ter uma carga (positiva ou negativa) tão elevada que quando morre a carrega para a outra vida ao reencarnar. Isto explica que entre duas pessoas que nasçam e vivam em condições muito semelhantes uma possa ter muita sorte e outra não - é que, independentemente das acções nesta vida, carregam a carga da vida anterior. Não é, contudo, uma fatalidade, afirma Hansraj, porque alguém pode nascer com um "saldo negativo" e, pelas suas acções benevolentes (em relação à Humanidade e à Natureza), transformá-lo em positivo. O mundo é feito destas cargas positivas e negativas, e nos locais onde se dão tragédias o peso das cargas negativas é extremamente elevado. Mas há outro factor que, para os hindus, é muito significativo. "As nossas escrituras antigas, reveladas cinco ou seis mil anos antes de Cristo", explica Hansraj, "falam de um momento, que coincide com o nosso milénio, no qual o peso das cargas negativas na Terra será tão elevado que a própria Terra deixará de ter o seu comportamento normal e haverá muitas intempéries e catástrofes naturais". Apesar de nas condições criadas após o tsunami isso ser muito difícil, para os hindus é muito importante a cremação do corpo depois da morte, para libertar a alma. Só assim esta poderá ser julgada e se poderá avaliar a sua carga negativa ou positiva.

MUÇULMANOS O AVISO DO FIM DOS TEMPOS
Deus examina-nos constantemente, diz um dos versículos do Corão. Por isso, xeque Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa, acredita que uma tragédia como a que vários países da Ásia estão a atravessar, e que vitimou muitos muçulmanos, é um teste de fé. O que o Islão aconselha aos que passam por uma calamidade como esta é a serem pacientes - "sem dúvida que viemos de Deus e é para Ele o nosso regresso". Se para os muçulmanos tudo depende da vontade de Deus e muitas vezes os caminhos de Alá são impenetráveis, o crente tem que aceitar o que lhe acontece e mostrar que a sua fé é suficientemente forte para resistir a estes testes divinos. O xeque afasta, contudo, a hipótese de o maremoto ser um castigo. É antes, na sua interpretação, um sinal de Deus. Sinais que, de acordo com o Corão, vão anunciar o fim do mundo. Quando este começar a aproximar-se haverá constantemente sismos, avisa o livro sagrado dos muçulmanos. Por isso, para o imã da Mesquita Central, perante a tragédia os homens devem reflectir e compreender que está na hora de deixar as guerras e de "começar a falar com Deus". Quanto aos muçulmanos que morreram - e foram muitos, tendo em conta que a Indonésia, o maior país muçulmano do mundo, foi o mais atingido - são considerados mártires, explica Munir, como todos os que morrem em acidentes. "Que tenham uma vida melhor no Além é o desejo de todos nós".

CRISTÃOS PROCURAR O BEM NO MEIO DO MAL
Se Deus é o criador do Mundo e cuida das suas criaturas, como é que existe o Mal? Esta é, segundo o padre José Manuel Pereira de Almeida, a questão para a qual os cristãos procuram resposta quando são confrontados com uma catástrofe. E se para o mal moral, aquele que pode resultar das nossas acções ou inacção, pode haver explicações, o mal físico aparece sempre como um mistério. A única resposta é que "o Mundo, como o Homem, também está muito imperfeitamente construído e carece do nosso esforço para melhorar". A lição a tirar de tragédias está, talvez, nas palavras de Santo Agostinho, que disse que Deus nunca permitiria que qualquer Mal existisse nas suas obras se não fosse para fazer sair dele o Bem. O padre Pereira de Almeida recusa qualquer ideia de castigo ou de intencionalidade divina em relação aos que morreram - "a ideia do mal físico como um castigo aparece no Antigo Testamento, mas a partir de Jesus é tudo menos isso". Afasta também aquilo a que chama uma "perspectiva masoquista" de culto do sofrimento. Se é verdade que Jesus morreu em sofrimento - e também ele perguntou "Meu Deus, porque me abandonaste?" - o que nos mostra é que "o sofrimento pode ser vivido como redentor" e que é possível a "vida não perder o sentido no sofrimento".

BUDISTAS O RESULTADO DAS NOSSAS ACÇÕES
Muito diferente é, necessariamente, a visão dos budistas, por ser uma religião que não reconhece a existência de Deus Criador, nem a ideia de desígnio divino, que faria com que algumas pessoas estivessem naquele local naquele momento. "Tudo no mundo é resultado da causalidade", diz Tsering Paldron, monja budista portuguesa. "Tudo são causas e consequências, que têm a ver com as nossas opções, escolhas, intenções, acções". Um budista não vê as coisas como castigos ou recompensas. "Este tipo de tragédias acontece por uma acumulação de causas e resultados" - nunca nos interrogamos sobre o impacto da nossa decisão quando cancelamos uma viagem de avião e nada acontece; mas interrogamo-nos quando esse mesmo avião cai. Tal como os hindus, os budistas acreditam no karma, que é a "conta-corrente resultante das nossas acções", mas, segundo Tsering, não se trata de uma visão fatalista da vida. "Tudo o que ainda não aconteceu não está pré-determinado. Tem probabilidade de vir a acontecer, mas é alterado pelas nossas acções, incluindo as que estão acontecer neste momento". Após a morte a consciência não desaparece, é um fluxo contínuo que se ligará a um novo corpo - quanto tempo demorará essa reencarnação não está definido, pode acontecer mais depressa ou mais lentamente dependendo da intensidade das acções da pessoa na sua vida anterior.

JUDEUS QUANDO DEUS SE AUSENTA DA HISTÓRIA
Para Esther Mucznik, a ideia de castigo divino é completamente inaceitável e mesmo incompatível com o judaísmo. "Senão o que seria o Holocausto, a Inquisição, toda a história judaica?". Frisando falar apenas em seu nome, Mucznik lembra o Livro de Job e a história de como um homem bom pode ser alvo dos piores castigos sem que exista uma explicação aceitável. O importante, na sua opinião, é que "não podemos conhecer os desígnios de Deus" e muito menos pensarmos que somos intérpretes desses desígnios - uma "ideia perigosa" e que leva a acções como a do assassíno do antigo primeiro-ministro israelita Yitzhak Rabin, que disse que o seu braço foi conduzido por Deus. A seguir ao Holocausto, houve uma tentativa de perceber o papel de Deus na tragédia dos judeus, e se surgiu a ideia do castigo, surgiu também a ideia de que por vezes Deus ausenta-se da História - o que para Esther Mucznik é mais aceitável. Até porque a sua visão não é a de um Deus protector. "Deus não pode ser tão interveniente na história humana", diz. E se os homens têm a liberdade de escolher desobedecer a Deus, também a Natureza tem as suas próprias leis. Para Mucznik, "o Homem e a Natureza não são apenas o reflexo da manifestação divina - só assim se pode viver com Deus".

1 comentário:

Paulo César Faccioli disse...

Muito interessante estas diferentes visões; compartilhei-as no meu blog. Abraços.