Kcho, Via Crucis, 2013 (técnica mista sobre tela - 100x120 cm), pormenor
“A emigração ilegal é uma nova
forma de escravatura; e esse sacrifício, para mim, tem uma significação
religiosa”, diz Kcho, artista cubano que pintou recentemente uma Via Crucis, onde conta histórias de mulheres
e homens sem rosto que deixam Cuba à procura de melhores condições de vida.
Cuba, como Lampedusa (ver texto anterior no blogue), são símbolos dessas pessoas anónimas
que afrontam o mar, nele depositando o seu destino e o insondável mistério que
o determina, como escreve Luciano Caprile no catálogo de Via Crucis. A exposição, que esteve no Palazzo della Cancelleria
(onde funcionam várias instituições da Santa Sé), em Roma, entre Maio e Junho
deste ano, mostra barcos como se fossem totens, árvores ou cemitérios, e
pessoas que buscam, se enrodilham, desesperam ou esperam.
Alexis Leiva Machado, ou Kcho
(lê-se Kátchô) é um artista cubano nascido em Nova Gerona, na Isla de la
Juventud, a 12 de Fevereiro de 1970. Com quatro irmãs, é filho de Ignacio de
Loyola Leiva Abreu, carpinteiro e técnico de telecomunicações, e de Martina
Primitiva Machado Cuni, “incansável trabalhadora e artista popular”, como o
artista a define.
Em entrevista ao RELIGIONLINE a
propósito da sua exposição, Kcho explica como olha para este tema e fala sobre
o papel da fé, da arte e do artista: “Os meus desenhos, pinturas e instalações
são o reflexo desta dimensão da fé, os sonhos de esperança e solidariedade e
amor ao próximo.”
Kcho, Sem título, 2014 (técnica mista sobre tela - 187x155 cm)
P. – Como chegou ao tema da
emigração?
KCHO – Viajando e conhecendo, a
minha obra começa uma viagem, primeiro de reconhecimento, nos anos 90 do século
XX, quando fiz uma série de objectos de instalação, que analisavam e recriavam a
forma do nosso arquipélago: La Jaba, La Jaula, El Papalote. Mas em outra instalação, Siempre fue verde, de 1991, meti os pés no mar, e desde esse
momento estudo a insularidade, as suas complexidades, a viagem, os significados
e efeitos na vida e na natureza humana.
Sempre, desde as primeiras obras –
estas que referi –, a minha curiosidade e preocupação acerca deste tema foi
crescendo; e comecei a experimentar com outros materiais e mais o campo da
instalação e realizei uma obra que falava de algo que estava crescendo em Cuba:
as saídas, em busca de outro horizonte, em precários elementos flutuantes
feitos à mão e em casa, e com qualquer coisa. Desta energia nasceu La Regata (1993-94). Esta obra foi
considerada uma premonição, nesses tempos.
Kcho, A Regata, 1993-1994, instalação
(madeira, plástico, metal, cerâmica e objectos de uso comum)
P. – Que significados encontra
neste tema? A referência à Via Sacra remete para uma significação religiosa e
cristã. De que modo entende essa dimensão religiosa neste tema dos seus
quadros?
R. – O tema da emigração é
complexo e preocupante. Em todo o mundo, movem-se milhares de seres humanos de
forma insegura, sem documentos, com documentos falsos, traficados por máfias,
violados, maltratados, assassinados, desaparecidos.
Quando estes homens, mulheres e
crianças, saem de suas casas para empreender esta incerta viagem até um destino
sonhado, fazem-no na esperança de ter uma vida melhor para eles e seus
familiares. Milhares de viajantes perderam-se no caminho sonhado, em muitos
casos os seus sonhos e a sua fé desaparecem e estas famílias ficam marcadas por
perdas terríveis.
Estes viajantes são os escravos
destes tempos. A emigração ilegal é uma nova forma de escravatura; e esse
sacrifício, para mim, tem uma significação religiosa.
Kcho, A Última Ceia, 2011 (Óleo sólido sobre tela - 200x210 cm)
P. – Nos seus quadros, há um jogo
entre a solidão, por um lado, e o colectivo ou o amor, por outro. O comunitário,
o amor e a solidariedade são o remédio para a solidão?
R. – Fé, paz e amor é o que querem
todas as igrejas do homem, mas o político vai muitas vezes em outra direcção. A
arte tem um papel e uma responsabilidade que para mim é muito importante, como
o papel do artista na sociedade. Os meus desenhos, pinturas e instalações são o
reflexo desta dimensão da fé, os sonhos de esperança e solidariedade e amor ao
próximo. O amor, a fé e a criatividade são o remédio para a sociedade.
P. – Cuba tem gente que deixa a
ilha, Lampedusa é um porto de pessoas que buscam a Europa, sempre à procura de
trabalho ou de uma vida melhor. A Via Sacra é essa busca de um futuro melhor,
de uma ressurreição?
R. – Quando um país é agredido,
isolado, bloqueado, as pessoas movem-se. Quando a tua fé é perseguida, a tua
igreja destruída, os teus irmãos mortos; quando um país está sob o horror da
guerra, da opressão, fome, destruição, falta de educação, de saúde, de
direitos, então milhões de pessoas viajarão numa eterna Via Sacra já
pós-moderna, na qual os homens, mulheres e crianças levam, sobre o mar, a sua
lua e a sua estrela, a sua Cruz; seja no Estreito da Florida ou de Colombo, no
Passo dos Ventos, Gibraltar, Lampedusa ou no Adriático. Para mim, é um acto de
ressurreição colectiva, no qual a fé e o sonho são o “monumento final”.
Kcho, Monumento Final- Lampedusa, 2011 (Pastel sobre tela - 120x100 cm)
P. – Que lugar ocupa a questão
religiosa na sua vida e no seu labor de artista?
R. – Gosto desta pergunta.
Aproveitando o facto de estarmos no século XXI e de termos novas tecnologias da
comunicação, e convencido de que uma imagem fala mais do que mil palavras,
quero partilhar com os leitores do blogue algo que creio definir a minha fé e a
minha paixão, como homem e como artista. Partilho esta imagens do que já é o
Projecto de Utilidade Social Romerillo.
Um dos campos de jogos do Projecto de Utilidade Social Romerillo
O Projecto de Utilidade Social
Romerillo foi criado por Kcho, a partir de uma oficina de reparação de
autocarros escolares. A oficina abandonada foi transformada num centro
cultural, gratuito e aberto ao público, financiado apenas com os trabalhos de
Kcho. Construído entre Julho e Novembro de 2012, o centro foi inaugurado em 8
de Janeiro deste ano.
Romerillo é uma zona da capital cubana,
uma espécie de enclave marginal onde existiam seis zonas convertidas em
lixeiras. Idealizado por Kcho com o objectivo de melhorar a qualidade de vida
da comunidade, o projecto social incluiu a recuperação dessas áreas, que foram
transformadas em zonas de lazer familiar e parques infantis e desportivos.
O Kcho Estudio Romerillo
Laboratorio para el Arte é uma outra valência do projecto: o seu único projecto
é a experimentação, o desenvolvimento, a difusão das artes e o entendimento
humano, espaço para a cultura, o conhecimento e a paz. O seu propósito, diz o
artista, é desenvolver projectos com um marcado perfil social, educativo e
cultural, dirigido ao melhoramento humano e a defender os valores da cultura
nacional cubana, assim como o seu papel e o seu contributo no concerto global
dos povos.
Kcho Estudio Romerillo Laboratorio para a Arte
- Biblioteca Juan Almeida Bosque
(Informações e outras fotos do
projecto podem ser vistas aqui)
Sem comentários:
Enviar um comentário