Exposição
A identidade era dada por um
pedaço de tecido, uma carta de jogar, alguma pequena fita, um bilhete de
lotaria, medalhas ou alguma peça de joalharia. Metade ficava com a mãe, a outra
metade acompanhava a criança deixada na roda. Desse modo se assegurava que mais
tarde, quando eventualmente os pais pretendessem recuperar a criança, aquele contra-sinal
poderia provar a paternidade.
Sinais de identidade pela metade.
As crianças eram entregues na roda dos expostos, que se encontrava em
misericórdias, mosteiros ou conventos. Na Misericórdia de Lisboa, em concreto, chegaram
a ser recebidas, em média, cerca de 2600 crianças por ano (sete por dia), no
início da segunda metade do século XIX, como recorda a reportagem de Rosa Ramos,
no i de terça-feira passada, a partir
da história de um desses sinais.
Os sinais são um dos aspectos da
história da instituição criada em 1498, sob impulso da rainha D. Leonor, agora
recuperados na exposição Visitação – O
Arquivo: memória e promessa, que ainda pode ser vista até domingo, na nova
sala de exposições temporárias do Museu de São Roque, em Lisboa. O arquivo é
uma “forma de identificação”, escreve o curador da exposição, Paulo Pires do
Vale, no (belíssimo) catálogo da mostra. “Olhar para um arquivo é olhar para
uma identidade em construção – neste caso, a da Misericórdia de Lisboa.” Daí
que o material selecionado conte “uma parte dessa história – porque a
identidade é uma narrativa, sempre inacabada”. As fotografias de Daniel Blaufuks, feitas a partir de alguns desses sinais, dão uma nova identidade a essas identidades perdidas.
Sinais de identidades são também
as ortóteses preparadas para doentes do Hospital Ortopédico de Sant’Ana. Ou
ainda os pobres que procuravam comida nas cantinas da Misericórdia. O rosto,
portanto. De muitos rostos se faz a história da instituição – de quem pôde nela
procurar alívio ou de quem ajudava outros. É de rostos que falam as Filhas do Fogo, projecções do cineasta
Pedro Costa que acolhem o visitante, à entrada da exposição, ainda na nave
central da igreja. “Nestes rostos, estão todos os rostos da história – estamos
nós. Despojados e nus. Desarmados. O rosto, a sua presença, é a verdadeira Lei.
Menos como interdito, mais como promessa de bem-aventurança”, escreve Paulo
Pires do Vale no catálogo.
O itinerário da exposição
completa-se com o Magnificat, ou a insubmissa voz, de João Madureira, peça musical que dialoga com o Magnificat de Filipe Magalhães
(1571-1652) e que foi estreada na passada terça-feira com as vozes e os
instrumentos do Officium Ensemble (e que se pode escutar de novo através do disco
incluído no catálogo). Uma peça que, como escreve o compositor de Vento – Missa de Pentecostes, citando
Sophia de Mello Breyner, retoma aquele que é “talvez o mais belo poema que
existe”. Como uma voz, acrescenta, que “não cessa de nos interpelar, tanto é o
que nos promete e o que vemos que, entre as nossas mãos, teima em não se
cumprir”.
Visitação – O Arquivo: Memória e
Promessa
Galeria de Exposições Temporárias
do Museu de São Roque (Lisboa)
Até Domingo, das 10h às 18h
mais informações aqui
(textos anteriores neste blogue: um balanço do Sínodo dos Bispos sobre a família; um livro sobre os protestantes e católicos que tentaram evitar a I Guerra Mundial; um discurso do Papa pouco noticiado dizendo que a terra, o tecto e o trabalho são direitos sagrados)
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