Livro – Texto de Silas
de Oliveira
Meia dúzia de anos antes de 1914, duas delegações de mais de uma centena de
representantes das principais Igrejas cristãs, tanto das Ilhas Britânicas como
da Alemanha, trocaram entre si duas visitas organizadas ao mais alto nível, com
o objectivo expresso de promoverem o entendimento recíproco e a defesa da paz.
Não se limitaram a gestos de cortesia diplomática ou sentimental. Deixaram
comissões de continuidade, publicaram um primeiro volume bilingue, Der
Friede und die Kirche – Peace and the Churches, com textos e
fotografias dos participantes e locais visitados, e o movimento, entretanto
alargado a outras Igrejas europeias e norte-americanas, começou a preparar uma
conferência mundial, uma verdadeira Conferência Ecuménica com representantes de
todas as Igrejas e nações. Foi escolhida a cidade suíça de Constança e marcada
a data de 1 de Agosto de 1914 – que acabaria por ser precisamente o dia das
primeiras declarações de guerra… Os delegados que conseguiram chegar (menos de
metade dos 153 inscritos) mal tiveram tempo de redigir um apelo a todos os
governantes antes de regressarem aos seus países. Os que vieram por Londres
deixaram de pé um comité intitulado, ironicamente, World Alliance for Promoting
International Friendship Through the Churches (Aliança mundial para
promover a amizade internacional através das igrejas).
Dois homens revelaram-se, nesta história, os mais empenhados protagonistas:
pelo lado britânico, Joseph Allen Baker, um pacifista quaker, empresário de
origem canadiana radicado em Londres, onde chegou a membro do Parlamento; pelo
lado alemão, o barão Eduard de Neufville, de Frankfurt, um aristocrata protestante
envolvido na defesa da paz e que já tinha promovido visitas recíprocas entre
editores de jornais britânicos e alemães. Era muito claro para eles o papel
nocivo daquilo que um historiador chamou “a cheap popular press” (imprensa
barata e popular) de ambos os lados, no final do séc. XIX, na instigação do
antagonismo e na promoção da corrida às armas.
Na preparação da primeira visita, Allen Baker tornou claro que deveriam
tomar parte nela dirigentes de todas as áreas das Igrejas de ambos os países,
tanto protestantes como católicos; que os dois Governos deviam reconhecer este
movimento e se possível dar-lhe activa cooperação, e do mesmo modo o rei de
Inglaterra e o imperador alemão; e que os visitantes germânicos seriam
convidados pessoais em casa dos seus amigos britânicos, desde o início até ao
fim da viagem, e convidados a pregar nos púlpitos das Igrejas de Londres no
domingo incluído nos dias da sua estadia. O mesmo procedimento foi seguido em
ambas as visitas.
“A nossa franca cooperação...”
A primeira decorreu de 26 de Maio a 3 de Junho de 1908 e levou a Londres
uma delegação de 131 dirigentes eclesiásticos e leigos das várias Igrejas
alemãs, na sua grande maioria provenientes das Igrejas Evangélicas Luteranas históricas
dos diversos territórios (Landeskirchen).
Entre eles estavam o Capelão da Corte, Ernst von Dryander, o Probst (Superintendente Geral) Faber, de
Berlim, pelo menos 13 professores de teologia e alguns leigos notáveis, como o
Barão de Neufville. Entre os 15 católicos avultava o Probst da Catedral de Santa Hedwig em Berlin, C. Kleineidam, em representação
do arcebispo de Colónia. Os representantes das Igrejas independentes
(Associação Evangélica, Baptistas, Metodistas e Congregacionais) somavam duas
dezenas.
A delegação foi recebida pelo rei Eduardo VII e em todas as conferências se
ouviram, de ambos os lados, apelos à compreensão recíproca e à recusa da guerra
entre as duas nações. Uma resolução final, aplaudida no Albert Hall, declarava:
“A nossa franca cooperação muito fará para promover a vinda do Reino da Paz
sobre a Terra e da boa-vontade entre os homens.”
Em Fevereiro do ano seguinte, Baker era recebido em Potsdam pelo kaiser
Willelm II, para preparar a visita de retribuição dos britânicos à Alemanha,
que veio a realizar-se na primeira metade de Junho. O grupo era ligeiramente
menor, de 109 pessoas, mas entre os 42 anglicanos havia seis bispos e três
eclesiásticos com o título de Dean (deão)
das respectivas catedrais. As Igrejas independentes (Free Churches), muito activas neste movimento, totalizavam 45
delegados, entre Baptistas, Congregacionais, Presbiterianos, Metodistas, Quakers
e Unitarianos. O grupo católico era composto por 13 delegados, entre eles o bispo
Richard Collins e Msr. J. Moyes, da catedral de Westminster, conhecido
apologeta que fizera parte, em 1896, da Comissão Papal sobre as Ordens
Anglicanas. Entre os leigos das várias denominações encontravam-se doze membros
do Parlamento.
A maior recepção realizou-se no dia 11 de Junho, no Philarmonie Hall de
Berlim, com uma presença de mais de dois mil berlinenses, e três dias mais
tarde uma audiência em Potsdam, com o kaiser. Uma resolução final foi aprovada
em 15 de Junho na capela do Seminário dos Pregadores de Berlim, reafirmando o
texto do ano anterior, do Albert Hall, e pedindo o estabelecimento de
estruturas permanentes de comunicação entre as Igrejas de ambos os países, “com
o propósito de promover a boa vontade entre as duas nações”.
Conta-se que Allen Baker, ao chegar a Londres dez dias depois da sua precipitada
saída de Constança, desabafou em lágrimas: “Eles derrotaram-nos! Chegámos tarde
demais!”
O que sucedeu nos anos seguintes parece confirmar a indiferença (ou o
pessimismo) dos que nunca acreditaram no movimento ecuménico. Mas é pelo menos
justo reconhecer, deste episódio mal conhecido (e tão actual nos dias que
correm) que os “pais fundadores” do mesmo movimento tinham a intuição correcta
e sabiam o que estava realmente em causa.
Não é este tema (colhido do capítulo “Os Primeiros a ver o Futuro”) o único
que torna importante o livro aqui apresentado. Mas o seu autor, o pastor baptista
britânico Keith Clements, com muitos anos de experiência e ensino nas várias
instâncias do movimento ecuménico, mais a autoridade institucional de ter sido,
de 1997 a 2005, secretário-geral da Conferência das Igrejas Europeias (do
Conselho Mundial de Igrejas), faz com Ecumenical
Dynamic – living in more than one place at once a melhor síntese
possível dessa “intuição correcta” e dos motivos por que ela não deve ser
varrida ou desencorajada pelos percalços do actual “inverno ecuménico”.
O livro saiu o ano passado, numa edição da
World Council of Churches Publications.
Sem comentários:
Enviar um comentário