segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Os cristãos britânicos e alemães que fizeram tudo para impedir o deflagrar da I Grande Guerra

Livro – Texto de Silas de Oliveira



Meia dúzia de anos antes de 1914, duas delegações de mais de uma centena de representantes das principais Igrejas cristãs, tanto das Ilhas Britânicas como da Alemanha, trocaram entre si duas visitas organizadas ao mais alto nível, com o objectivo expresso de promoverem o entendimento recíproco e a defesa da paz. Não se limitaram a gestos de cortesia diplomática ou sentimental. Deixaram comissões de continuidade, publicaram um primeiro volume bilingue, Der Friede und die Kirche – Peace and the Churches, com textos e fotografias dos participantes e locais visitados, e o movimento, entretanto alargado a outras Igrejas europeias e norte-americanas, começou a preparar uma conferência mundial, uma verdadeira Conferência Ecuménica com representantes de todas as Igrejas e nações. Foi escolhida a cidade suíça de Constança e marcada a data de 1 de Agosto de 1914 – que acabaria por ser precisamente o dia das primeiras declarações de guerra… Os delegados que conseguiram chegar (menos de metade dos 153 inscritos) mal tiveram tempo de redigir um apelo a todos os governantes antes de regressarem aos seus países. Os que vieram por Londres deixaram de pé um comité intitulado, ironicamente, World Alliance for Promoting International Friendship Through the Churches (Aliança mundial para promover a amizade internacional através das igrejas).
Dois homens revelaram-se, nesta história, os mais empenhados protagonistas: pelo lado britânico, Joseph Allen Baker, um pacifista quaker, empresário de origem canadiana radicado em Londres, onde chegou a membro do Parlamento; pelo lado alemão, o barão Eduard de Neufville, de Frankfurt, um aristocrata protestante envolvido na defesa da paz e que já tinha promovido visitas recíprocas entre editores de jornais britânicos e alemães. Era muito claro para eles o papel nocivo daquilo que um historiador chamou “a cheap popular press” (imprensa barata e popular) de ambos os lados, no final do séc. XIX, na instigação do antagonismo e na promoção da corrida às armas.
Na preparação da primeira visita, Allen Baker tornou claro que deveriam tomar parte nela dirigentes de todas as áreas das Igrejas de ambos os países, tanto protestantes como católicos; que os dois Governos deviam reconhecer este movimento e se possível dar-lhe activa cooperação, e do mesmo modo o rei de Inglaterra e o imperador alemão; e que os visitantes germânicos seriam convidados pessoais em casa dos seus amigos britânicos, desde o início até ao fim da viagem, e convidados a pregar nos púlpitos das Igrejas de Londres no domingo incluído nos dias da sua estadia. O mesmo procedimento foi seguido em ambas as visitas.

A nossa franca cooperação...

A primeira decorreu de 26 de Maio a 3 de Junho de 1908 e levou a Londres uma delegação de 131 dirigentes eclesiásticos e leigos das várias Igrejas alemãs, na sua grande maioria provenientes das Igrejas Evangélicas Luteranas históricas dos diversos territórios (Landeskirchen). Entre eles estavam o Capelão da Corte, Ernst von Dryander, o Probst (Superintendente Geral) Faber, de Berlim, pelo menos 13 professores de teologia e alguns leigos notáveis, como o Barão de Neufville. Entre os 15 católicos avultava o Probst da Catedral de Santa Hedwig em Berlin, C. Kleineidam, em representação do arcebispo de Colónia. Os representantes das Igrejas independentes (Associação Evangélica, Baptistas, Metodistas e Congregacionais) somavam duas dezenas.

A delegação foi recebida pelo rei Eduardo VII e em todas as conferências se ouviram, de ambos os lados, apelos à compreensão recíproca e à recusa da guerra entre as duas nações. Uma resolução final, aplaudida no Albert Hall, declarava: “A nossa franca cooperação muito fará para promover a vinda do Reino da Paz sobre a Terra e da boa-vontade entre os homens.”
Em Fevereiro do ano seguinte, Baker era recebido em Potsdam pelo kaiser Willelm II, para preparar a visita de retribuição dos britânicos à Alemanha, que veio a realizar-se na primeira metade de Junho. O grupo era ligeiramente menor, de 109 pessoas, mas entre os 42 anglicanos havia seis bispos e três eclesiásticos com o título de Dean (deão) das respectivas catedrais. As Igrejas independentes (Free Churches), muito activas neste movimento, totalizavam 45 delegados, entre Baptistas, Congregacionais, Presbiterianos, Metodistas, Quakers e Unitarianos. O grupo católico era composto por 13 delegados, entre eles o bispo Richard Collins e Msr. J. Moyes, da catedral de Westminster, conhecido apologeta que fizera parte, em 1896, da Comissão Papal sobre as Ordens Anglicanas. Entre os leigos das várias denominações encontravam-se doze membros do Parlamento.
A maior recepção realizou-se no dia 11 de Junho, no Philarmonie Hall de Berlim, com uma presença de mais de dois mil berlinenses, e três dias mais tarde uma audiência em Potsdam, com o kaiser. Uma resolução final foi aprovada em 15 de Junho na capela do Seminário dos Pregadores de Berlim, reafirmando o texto do ano anterior, do Albert Hall, e pedindo o estabelecimento de estruturas permanentes de comunicação entre as Igrejas de ambos os países, “com o propósito de promover a boa vontade entre as duas nações”. 
Conta-se que Allen Baker, ao chegar a Londres dez dias depois da sua precipitada saída de Constança, desabafou em lágrimas: “Eles derrotaram-nos! Chegámos tarde demais!”
O que sucedeu nos anos seguintes parece confirmar a indiferença (ou o pessimismo) dos que nunca acreditaram no movimento ecuménico. Mas é pelo menos justo reconhecer, deste episódio mal conhecido (e tão actual nos dias que correm) que os “pais fundadores” do mesmo movimento tinham a intuição correcta e sabiam o que estava realmente em causa.
Não é este tema (colhido do capítulo “Os Primeiros a ver o Futuro”) o único que torna importante o livro aqui apresentado. Mas o seu autor, o pastor baptista britânico Keith Clements, com muitos anos de experiência e ensino nas várias instâncias do movimento ecuménico, mais a autoridade institucional de ter sido, de 1997 a 2005, secretário-geral da Conferência das Igrejas Europeias (do Conselho Mundial de Igrejas), faz com  Ecumenical Dynamic – living in more than one place at once a melhor síntese possível dessa “intuição correcta” e dos motivos por que ela não deve ser varrida ou desencorajada pelos percalços do actual “inverno ecuménico”.

O livro saiu o ano passado, numa edição da  World Council of Churches Publications.

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