Análise
(foto Vatican.va, reproduzida daqui)
O Sínodo dos Bispos sobre a
Família não acabou. Terminou apenas mais uma etapa. Vale a pena olhar para o
caminho já percorrido na preparação do Sínodo “a sério” – o de Outubro do
próximo ano, após o qual o Papa redigirá uma exortação apostólica sobre o tema –
bem como para algumas perplexidades destas duas semanas de debate.
A primeira pergunta é: será que
alguém entende bem o que se passou nestes 15 dias? Provavelmente, poucas
pessoas arriscarão uma leitura clara e isso não se deverá fundamentalmente à
confusão de notícias surgidas nas duas últimas semanas. A babel informativa
reflecte, em grande parte, a pluralidade e diversidade de pontos de vista que apareceram
na aula sinodal, as tensões entre diferentes protagonistas e as visões
diversificadas sobre o que deve ser o olhar da Igreja acerca da família no
mundo de hoje.
Essa é uma primeira observação: o apelo do Papa a que os bispos falassem frontalmente parece ter tido consequência, a
avaliar por aquilo que se passou pelo menos na primeira semana e muitos bispos
aceitaram mesmo libertar a palavra. Mas há outra evidência: é natural, perante
um acontecimento que tantas expectativas gerou, que surjam muitas opiniões a tentar
marcar terreno. Como é positivo, para a Igreja Católica, que a dinâmica de um
Sínodo – normalmente pouco acompanhada pela comunicação social, por se arrastar
durante duas ou três semanas de debates mais ou menos cifrados para o grande
público – seja seguida com tanta atenção. Isso deve-se ao Papa Francisco, ao
processo por ele lançado e à forma como ele desejou que o debate se fizesse –
aberto, sincero, participado pelo maior número.
Mas essa atenção redobrada surge
também (sobretudo?) pelo assunto escolhido, que não deixou de lado nenhuma das
questões difíceis que o tema família implica. É que foi por causa das questões
ligadas à moral e à ética familiar que, nas últimas quatro décadas, se deu o
grande afastamento de muitos católicos em relação à estrutura eclesiástica ou,
mesmo, à comunidade eclesial ou à questão de Deus. Foi por aqui que se deu o
que muitos chamam de “cisma silencioso”. Seria por aqui, portanto, que a
atenção de muitas mulheres e homens se poderia de novo reconciliar ou
reaproximar da Igreja.
A repetição mecânica
Houve outro apelo do Papa no
início da assembleia: o de levar para o Sínodo a realidade das igrejas
particulares – que é como quem diz, a realidade das famílias no mundo inteiro.
A resposta a esse apelo pode não ter sido tão clara. Essa falha tinha já sido
notada antes no Instrumentum laboris,
o documento de trabalho inicial, que era uma decepção em diversos pontos e levava mesmo à sensação de déjà vu,
como notava o jesuíta Thomas Reese.
Pior ainda é que esse documento de trabalho não recolhia, em diferentes pontos,
aquele que era o sentir dominante das respostas chegadas a Roma: a doutrina da Humanae Vitae, a encíclica de Paulo VI sobre a
regulação dos nascimentos, publicada em 1968, “nunca funcionou e não é realista pensar que possa
continuar a ser defendida, as pessoas já nem se lembram da encíclica e muitos
dizem mesmo que não é para respeitar”, como me referia um responsável do
secretariado do Sínodo, em Março, depois de chegarem a Roma respostas de todo o
mundo ao questionário inicial. Aliás, várias conferências episcopais, entre as
quais a alemã, tinham feito notar esse desfasamento entre o ensino
da Humanae Vitae e a vida e prática
de tantos católicos, pedindo uma mudança doutrinal nessa matéria.
Esta falha na atenção à multifacetada realidade
familiar continuou nos últimos dias, quando os grupos de trabalho“corrigiram” o sentido do relatório intercalar,
apresentado segunda-feira.
O caleidoscópio de que se compõe
hoje a realidade familiar já não se compadece com a
repetição mecânica de uma doutrina. Antes exige um questionamento de várias
regras – desde logo, a questão da contracepção e planeamento familiar,
verdadeira pedra no sapato de uma moral católica que deve antes acentuar as
dimensões evangélicas da responsabilidade, liberdade e felicidade. E pede uma
grande criatividade pastoral, na linha do acolhimento e da misericórdia, sobre
as quais o Papa vem insistindo e que, no evangelho de Jesus, têm uma clara
primazia sobre a regra e a lei.
Várias intervenções na aula
sinodal – de casais convidados, bispos ou cardeais – apontaram nesse sentido,
mas o tom dominante, no final, terá sido ainda o da repetição doutrinal. E isso
não chega. Um bispo africano perguntava (ver de novo o vídeo já referido): o que dizer a um africano
casado com várias mulheres, coisa normal na sua cultura, que depois se converte
ao cristianismo? Não se pode apenas dizer-lhe que escolha uma mulher e rejeite
as outras, sugeria o mesmo bispo.
Ou seja, há perguntas com resposta
difícil – também em questões como a maternidade e paternidade responsáveis, a
pastoral com divorciados, a violência doméstica ou a homossexualidade, entre
outras questões – às quais não se pode responder apenas com a mecânica
tradicional. E foi para encontrar respostas a essas perguntas que o
Papa convocou este Sínodo extraordinário. Caso contrário, deveria perguntar-se
se valia a pena 253 pessoas gastarem 15 dias em Roma apenas para repetir o que
a doutrina católica vem dizendo nas últimas décadas...
Já descobrimos tudo?
Nesta sexta-feira, na conferência
de imprensa diária, o cardeal Reinhard
Marx, arcebispo de Munique, disse duas coisas essenciais para este debate. A primeira: “A verdade não é um sistema, mas uma pessoa,
Cristo. O Evangelho não muda, mas devemos perguntar-nos se já descobrimos
tudo.” Ou seja, não são apenas os católicos "progressistas" que querem mudanças, pois há cardeais e bispos a chamar a atenção para as mesmas coisas. E a segunda, com o exemplo de um dos temas em aberto, o da
homossexualidade, para referir que nem tudo é apenas preto ou branco e dando o
exemplo de homossexuais com uma relação duradoura e fiel ou de outros que mudam
de parceiro com frequência: são casos diferentes que, por isso, não devem ser
colocados ao mesmo nível, exemplificava. Para concluir que o importante é
a palavra “exclusão” não integrar o léxico da Igreja.
É certo
que, para aumentar a confusão acerca do que verdadeiramente se estava a passar,
o Vaticano também deu uma ajuda. Uma das notícias divulgadas pelo
Serviço de Informação dizia, segunda-feira passada, que o relatório intercalar
tinha sido bem acolhido pela assembleia. O que não terá sido bem o caso.
O relatório intercalar, é verdade,
trazia um tom novo em diversos aspectos de linguagem que terá assustado muitos participantes da assembleia (e não faltaram erros de tradução a agravar as tensões, numa pecha
infelizmente já habitual em textos do Vaticano).
E isso voltou a insuflar as expectativas – muitos chegaram a dizer que a Igreja
tinha mudado a doutrina sobre a homossexualidade, o que era um manifesto
exagero, lendo o texto com atenção. Mas o mesmo relatório não mudava a
linguagem, por exemplo, em relação à questão da contracepção, onde é urgente
acabar com a distinção entre métodos “naturais” e “artificiais” e colocar o
acento na paternidade e maternidade responsáveis (ideia que defendi há dias no
debate de actualidade religiosa na Rádio Renascença )
Uma outra nota à margem: espanta ouvir
agora um dos mais importantes cardeais da Cúria – Gerhard Müller,
prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – queixar-se da suposta “censura”
a que posições como as suas teriam sido sujeitas no processo do Sínodo.
É que, durante 30 anos, poucos eram
os cardeais ou bispos preocupados com tantos e tantos crentes que se queixavam
de se sentir desprezados e marginalizados na Igreja. Agora que, felizmente,
aparecem vozes diferentes e opiniões diversas sobre tantos temas, já pode haver
queixas da suposta censura – como se fosse possível uma estrutura do Vaticano
censurar um dos maiores responsáveis da Santa Sé... Aliás, Müller
não se poupou a esforços para vincar a sua posição, quer com a publicação do
livro Permanecendo na Verdade de Cristo:Matrimónio e Comunhão na Igreja Católica,
quer através de entrevistas e declarações várias, quer mesmo tornando conhecidos
comentários seus, pouco abonatórios, sobre o relatório intercalar do Sínodo.
Felizmente, o debate sobre temas
como a da possibilidade da comunhão para os divorciados esteve bem vivo, com o
cardeal Walter Kasper, autor da conferencia do consistório de Fevereiro a
pedido do Papa, a responder também aos argumentos críticos dos seus colegas
cardeais.
Finalmente, uma questão semântica:
muitos comentadores, jornalistas e mesmo pessoas da Igreja falavam desta
assembleia como o sínodo da família. A linguagem, por vezes, cria a realidade –
ou, pelo menos, altera-a. Esta assembleia era um sínodo de bispos sobre a
família, no qual participavam 14 casais, sim. E pode acrescentar-se que, se os
bispos são famílias uninominais, então todas as realidades da família que hoje
existem deveriam ter sido chamadas e tidas em conta na aula sinodal. Mas o
dia-a-dia da vida das famílias – afectos, tensões, gestão de contas, educação
dos filhos, vida escolar e tantas outras coisas – estão ausentes da experiência
quotidiana dos bispos. E esse é um dado a ter em conta. Estamos, por isso,
muito longe ainda de poder falar de um sínodo da família – e a semântica não é
de somenos, neste como em outros casos.
De resto, o sínodo, como a
procissão, ainda vão no adro. Temos pela frente, pelo menos, mais um ano de
debates, de expectativas insufladas ou retraídas, de muito caminho para fazer.
O próximo ano será crucial, com as conclusões do Sínodo de 2014 e as respostas
a um segundo questionário a serem de novo discutidas, como recorda o arcebispo
de Manila (Filipinas), Luis Antonio Tagle numa entrevista a La Vie. Mas, seguramente, a dinâmica posta
em marcha pelo Papa já não voltará atrás.
4 comentários:
Excelente reflexão, António.
A Esperança e a Fé de uma Igreja inteiramente inclusiva, i é, de uma Igreja realmente Católica,
diz-nos que nenhum gesto, nenhuma palavra é inconsequente
e dão-nos a certeza de que "nada é só isto" ou "é só o que parece".
O Sínodo está por agora num passo inicial.
Teresa Frazão
Prezado António,
Antes de mais, destas últimas semanas ficaríamos com a ideia de que o que sucedeu em Roma, ao invés de um Sínodo dos Bispos sobre a Família, teria sido, antes, um sínodo LGBT, tal a profusão de notícias contraditórias e a confusão difundida por Roma. E a confusão, diz-nos a Doutrina, é diabólica.
No entanto, destas últimas semanas podemos reter, no essencial, o que tem sido a Igreja na sua relação com o mundo. A Igreja pós-conciliar.
Da relação da Igreja com o mundo pelos media: profeticamente disse ainda hoje o Arcebispo Chaput, de Filadélfia, colhermos informação na imprensa é um equívoco. A imprensa, sabemo-lo, está interessada na espectacularização da dissensão e, em última análise, no ataque à Igreja. E, como a ignorância abunda nas redações, facilmente obtemos explicação para parte da confusão difundida a partir de Roma. Mas não explica toda. (E sobre esta relação Igreja/media recomendo a leitura de um post do Tiago Cavaco, pastor Baptista, no blog A Voz do Deserto, a propósito do despropósito deste Sínodo.)
Nota também para o equívoco que é a suposta abertura e «transparência» deste Sínodo em que, pela primeira vez, não foi permitida a publicação das transcrições de todas as intervenções do colégio sinodal.
Depois, vários vícios, diria dogmas, seculares, que, como também profeticamente avisou o Beato Paulo VI, são o «o fumo de Satanás no altar do Senhor». De todos eles, o maior, o da «democracia», como se esta não fosse parte, não o todo, do processo de decisão que emana da Tradição. E como se o estado das puras democracias ocidentais não fosse lamentável para que não lhes puséssemos a vista no exemplo do que é o Bem-comum sitiado por interesses particulares e divisionistas. Depois, o clássico de inspiração marxista, «conservadores» vs. «progressistas» e a concomitante acrobacia semântica que faz do conservador uma figura cavernícula a bramir a inexorável marcha do «progresso» e dos amanhãs que cantam. Também de inspiração marxista, chegamos ao núcleo do que tem sido este Sínodo dos Bispos sobre a Família visto pela imprensa: a agenda LGBT (política, portanto) já hegemónica nas redações e tornada como que uma realidade inquestionável, dogmática, diria, da contemporaneidade iluminada a povoar as consciências tomadas pelo aggiornamento permanente da Igreja.
Vamos por partes.
Experimentamos hoje uma tremenda dificuldade em ouvir sem exaltação irracional e alguma ira a doutrina tradicional da Igreja no que toca à moral sexual e familiar. No mundo hiper-sexualizado e do prazer de imediata satisfação, a mensagem da castidade e do sexo como dádiva não encaixa. O homem moderno, habituado a ver atendidos todos os seus desejos, ou antes, caprichos, resiste a aceder, muito menos compreender, o que é dito pela Igreja. A vontade de emancipação radical deste sujeito moderno leva-o à grande recusa de qualquer obstáculo que se possa interpor entre o desejo e a imediata satisfação deste. É correcto o diagnóstico que há pouco tempo fez a Conferência Episcopal Alemã, que refere, sobre a incapacidade da doutrina exposta na Humanae Vitae chegar ao coração dos homens.
Estes mesmos homens, mergulhados na mais narcotizada atmosfera cultural que o Ocidente experimentou, erguem-se, do meio do lamaçal da irracionalidade em que habita, para, com soberba e orgulho (doenças típicas de um certo modernismo), reclamar a sua subjectividade e umbigo como o novo Absoluto. O eu elevado a Deus. A egolatria que devém psicose: o capricho como forma de leitura do mundo e, consequentemente, princípio de organização do real. Daqui à construção de uma obsessiva ideia de democracia como palanque onde os outros terão imperiosamente que ouvir e cumprir a vontade do eu é um instante. Da polifonia onde se ouça a voz de cada crente, de cada homem, e que canta toda a Igreja, passamos rapidamente ao ruidoso coro da dissensão do mundo.
É este o primeiro momento do ataque à Tradição. Um ataque caucionado por uma ideologia que anuncia a tábua rasa do passado, logo da Tradição, em prol da novidade permanente. E a novidade, parece, é a homossexualidade e o adultério e as separações. Coisas nunca vistas e experimentadas pela humanidade e descobertas há coisa de 5 anos pela faróis do progresso civilizacional em gabinetes de estudos sociais da Academia Ocidental.
De que falamos quando falamos de «acolhimento» a homossexuais e a divorciados recasados? Falamos em rasgar as epístolas de Paulo? Falamos em renunciar ao anúncio sempre novo da Verdade do Evangelho na Pessoa de Cristo e dos ensinamentos (moral) que dimanam sempre fulgurantes do Salvador? Falamos em esquecer a realidade do mal e da pessoa de Satanás (e o Papa Francisco amiúde se lhe refere) e do pecado, que tantas e tantas vezes para eles somos alertados por Cristo? Falamos em abolir o 6º mandamento da Lei Mosaica? Falamos em abrir brechas na beleza da doutrina tradicional da moral sexual e familiar por causa da exigência desta, escudados na sensibilidade contemporânea do hedonismo radical? Falamos em desistir da bondade da Verdade por troca com o "bonismo" (Papa Francisco), do sentimentalismo e auto-indulgência com que vivemos? De que falamos então quando falamos em "acolhimento"?
Obviamente que o sofrimento dos irmãos, de todos os irmãos, deve ser a prioridade dessa Igreja-hospital-de-campanha anunciada pelo Papa Francisco. Deve ser a prioridade de todos nós, em obediência ao imperativo da Caridade e do Amor. Mas a Misericórdia não pode ser a erosão do rigor doutrinal, a Misericórdia não pode ser dita como novo fariseísmo que, desta vez, decorre do mundo radicalmente secular, a Misericórdia não é, jamais, contradição com a Verdade. A Misericórdia não é complacência. Muito pelo contrário.
O texto de Kasper enferma em várias contradições, ainda que possa sugerir uma nova direção pastoral sobre estas matérias. E, de caminho, abrindo o recurso à excepcionalidade e às irrepetíveis circunstâncias de cada caso (o óbvio ululante), mina, não o edifico doutrinal, mas a condenação não ao pecador mas ao pecado.
Por outro lado, é espantoso que num debate sobre moral sexual e família, no afã da novidade e de 'acompanhamento' do mundo, não se ouça uma palavra a partir da magistral Teologia do Corpo de S. João Paulo II que, recorde-se, foi uma brutal resposta a, lá está, novos problemas, entre os quais o aparecimento da SIDA, dentro dos ensinamentos da Igreja. Espantoso também como a Verdade, o mal, o pecado, a caridade (amor) são termos quase apagados da gramática do que temos ouvido ultimamente e com mais estridência de dentro da Igreja - sim, a semântica também molda a realidade.
Como disse o Cardeal Dolan, em resposta a Kasper (por acaso, ou não, autor de infelicíssimas e lamentáveis acusações às igrejas africanas), não é a Igreja que tem que ser transformada pelo mundo, é o mundo que necessita de ser transformado pela Igreja. E isso, a Igreja só o poderá fazer se proclamar com alegria a Verdade de Cristo; se permanentemente se converter a essa Verdade, ciente das suas misérias e pecados. A Igreja e todos nós.
Tudo isto deixar-nos-ia perplexos e desorientados, como se de Roma ainda erradiasse a grande recusa do Papa Bento XVI e a sede vacante fosse o estado actual da cadeira de Pedro. Não fosse a fé de que o Espírito Santo conduz a Igreja ao altar onde, santificada, seja a verdadeira esposa de Cristo.
João Amaro Correia
p.s. peço desculpa pela extensão do comentário.
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