quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Celibato: um caso no Funchal e um debate no catolicismo




A igreja paroquial de Nossa Senhora do Monte, no Funchal 
(foto reproduzida daqui)


O padre do Funchal Giselo Andrade, que recentemente assumiu a paternidade de uma criança, foi retirado no final da semana passada do cargo de pároco do Monte (paróquia na periferia urbana da capital madeirense) e nomeado como responsável do Secretariado Diocesano das Comunicações Sociais e do Jornal da Madeira, título regional que recentemente voltou à posse da diocese, como se pode ler aqui com mais pormenor.
De acordo com uma nota da secretaria episcopal da diocese, o pároco do Monte manifestou, com o seu gesto de assumir a paternidade, o seu compromisso em “assumir todas as responsabilidades inerentes à situação criada, um sentido de responsabilidade que muita gente apreciou, sem que, no entanto, perante o facto, se deixassem de reconhecer, também, os seus aspectos negativos” – tendo em conta que “ele próprio manifestou o desejo de continuar a exercer o ministério sacerdotal, nas condições exigidas pela Igreja”, ou seja, voltando a exercer o celibato.
A nota (que pode ser lida aqui na íntegra) esclarece ainda que após “diálogos com o próprio sacerdote, ouvidas algumas instâncias da Igreja e percepcionando um sentido eclesial comum, por parte de sacerdotes, consagrados e leigos, entendeu-se que constitui maior bem para o padre Giselo Andrade e para a Igreja diocesana, dispensá-lo de pároco do Monte, podendo continuar a exercer o ministério pastoral, através de algumas actividades que lhe estavam já confiadas, na área das comunicações, e outras que eventualmente lhe sejam atribuídas.”
A questão do celibato eclesiástico tem estado na ordem do dia do debate público, não só por situações como esta (aqui recordada com mais detalhe), mas também pelos casos de abusos sexual de membros do clero sobre menores. Celibato e pedofilia não estão directamente relacionadas, diz o psicanalista João Seabra Dinis considera, nem a questão dos abusos está relacionada desde logo com o voto de castidade. No entanto, Seabra Dinis considera que a Igreja Católica deve reflectir profundamente o tema, para perceber o que deve fazer no futuro, como adianta nesta reportagem do Expresso Diário sobre o assunto, publicada há dias.

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Timothy Radcliffe: “Escutar, na Igreja, aqueles que têm opiniões diferentes”



Timothy Radcliffe (foto reproduzida daqui)

Muitas vezes, infelizmente, a Igreja mostrou ter medo de “escutar aqueles que têm visões diferentes” mas, no coração do cristianismo, “está o prazer da diferença”: “A verdade de Jesus é retratada em quatro Evangelhos. A Bíblia abraça a diferença entre Antigo e Novo Testamento. Jesus, a maior de todas: entre Deus e a humanidade. A Igreja só será aceita como mestra se estivermos dispostos a aprender com quem tem sabedoria ou verdade para compartilhar.”
As afirmações são do biblista, teólogo e antigo geral da Ordem dos Dominicanos, frei Timothy Radcliffe, que acrescenta: “A partir do século XVI, a Europa se caracterizou por uma crescente cultura do controle. Vemos isso na evolução do Estado moderno, que supervisiona todos os aspectos das nossas vidas. A Igreja foi contagiada por isso e contribuiu com essa cultura. O Papa Francisco está tentando descentralizar. Isso requer abrir mão do controle. Mas crer no Espírito Santo é sempre um abrir mão do controle, porque não sabemos antecipadamente aonde seremos levados. Pode assustar, mas também é empolgante!”
Timothy Radcliffe afirma ainda que é preciso que cada um se sinta “em casa, na Igreja, independentemente do tipo de relação” com que esteja envolvido: “Jesus comeu e bebeu com todos. Mas uma boa casa também é desafiadora. Convida você a se tornar mais virtuoso, mais coerente, mais comprometido, mais honesto. Ao acolher as pessoas, sempre fruto de histórias complexas, partimos de onde elas estão e de quem elas são. Em vez de ver os divorciados em segunda união como fracassados, poderíamos considerá-los como corajosos que não renunciam ao desejo de um compromisso para sempre. As pessoas gays possuem dons para enriquecer a Igreja e a sociedade. Todos somos peregrinos em busca do caminho para Deus.”
Nesta entrevista, onde também fala do Brexit, dos fundamentalismos e da questão dos migrantes e refugiados, Timothy Radcliffe responde também a uma pergunta sobre a eventual ordenação de mulheres: “O lugar delas na Igreja é uma das maiores questões a serem abordadas. Não é tão central a ordenação, mas sim dar às mulheres tanto autoridade quanto voz. As santas Catarina de Siena, Teresa d’Ávila, Teresa de Lisieux e muitas outras são grandes teólogas. Ora, como essa autoridade pode ser inserida nas estruturas da Igreja? Eu espero que haja mulheres diáconos, de modo que a voz delas seja escutar a partir dos nossos púlpitos. E por que não uma mulher cardeal, como o cardeal Tobin sugeriu?”
A entrevista, publicada inicialmente pelo Corriere della Sera, pode ser lida aqui na sua tradução em português.

(Uma outra entrevista com Radcliffe tinha sido publicada aqui)

A não-violência como proposta para contrariar a violência cada vez mais cedo na vida das crianças



Mahatma Gandhi (foto reproduzida daqui)

Um dia depois de um episódio de violência numa escola da Nazaré, que resultou na morte de um dos envolvidos, assinalou-se esta terça-feira o Dia Internacional da Não Violência e da Paz na Escola, comemorando assim a data em que Mahatma Gandhi, o líder da luta pacífica pela independência da Índia, foi morto no seu país, em 1948.
Na TSF, uma reportagem do jornalista Miguel Midões com sonoplastia de Paulo Jorge Guerreiro, trouxe à antena o caso do Agrupamento Escolar de Oliveira do Bairro, que promoveu um conjunto de iniciativas para assinalar a data.
Um dos dados revelados na reportagem é que a violência acontece cada vez mais cedo na vida das crianças e jovens; por isso se torna importante que se comece pelos mais novos a incutir o sentido da não-violência.
A reportagem pode ser ouvida aqui, onde também estão disponíveis mais informações. 
O tema da não-violência teve, assim, uma oportunidade rara para ser discutido no país, já que uma questão pouco presente no debate público. Um dos últimos contributos para a reflexão sobre o mesmo foi o texto elaborado pelo Metanoia – Movimento Católico de Profissionais, em 2002, na sequência de um processo de reflexão que contou com diversos contributos, incluindo de pessoas de outras religiões.  
O texto, com o título Proposta para uma Cultura da Não-Violência começa por verificar, nos seus dois primeiros parágrafos:
“No início do terceiro milénio a violência continua a ser uma constante na história da humanidade. Muitos são os motivos que alimentam as guerras: diferenças religiosas e/ou culturais, conflitos ideológicos e políticos, reivindicações territoriais, acesso a recursos naturais, a dinâmica própria dos interesses específicos do binómio sistema militar/indústria do armamento, o desejo de poder a todo o custo.
“O fim do bipolarismo e a apregoada nova ordem internacional, ao contrário do que alguns previam, não contribuíram para a resolução pacífica dos conflitos que continuam a provocar milhões de mortos e mutilados um pouco por todo o mundo e a impedir que muitas pessoas vivam em condições mínimas de dignidade. Ruanda, Sudão, Kosovo, Tetchénia, Argélia, Colômbia, Angola, Médio Oriente, Afeganistão, Iraque são algumas regiões do mundo onde o absurdo da guerra se manifestou recentemente e, em alguns casos, continua a manifestar.”
(O documento, em oito pontos, está disponível aqui na íntegra)

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Pedofilia e críticas ao Papa


Um dos altares para a celebração da eucaristia, durante a viagem do Papa ao Chile 
(foto reproduzida daqui)

As afirmações do Papa no Chile, a propósito dos abusos sexuais e de um caso concreto registado no país, continuam a motivar debate. No JN desta segunda-feira, Fernando Calado Rodrigues escreve sobre o tema, para afirmar:

“Reconhecer que o Papa não esteve bem e dizê-lo claramente não deverá ser entendido como um ataque, mas antes como um contributo para que ele possa corrigir o seu erro. A crítica destrutiva não deveria acontecer no seio da Igreja. Mas também não é positivo para as comunidades cristãs que os fiéis assumam um posicionamento acrítico em relação ao Mundo, à Igreja e até aos seus líderes. Os cristãos devem, isso sim, desenvolver uma atitude crítica, mas construtiva, a qual deverá ser sempre de uma correção fraterna: irmãos que se corrigem uns aos outros, para que todos possam ser melhores.”
(O texto pode ser lido aqui na íntegra)

O tema, que tinha merecido mesmo um pedido de desculpas do Papa às vítimas, por causa das suas declarações, motivou também, entre outros, um texto do brasileiro Mauro Lopes, no blogue Caminho Pra Casa, que acrescenta vários elementos informativos sobre o caso que está na origem da polémica, e ainda uma reflexão do teólogo chileno Iván Navarro, na página de Reflexión y Liberación (aqui, em castelhano).
 (sobre o tema, já aqui  tinha sido publicada a tradução do editorial do National Catholic Reporter.)

Iconografia cristã – História, teoria e imagem


Agenda

Iconografia cristã – História, teoria e imagem é o título genérico de uma acção de formação promovida pelo Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja, no âmbito do Projecto Thesaurus.
O curso, em sete sessões, uma vez por mês entre Fevereiro e Novembro, tratará, nas três primeiras sessões, as fontes da iconografia cristã, a iconografia medieval e da Idade Moderna. As restantes sessões serão dedicadas a diferentes temáticas: iconografia de Jesus, de Maria, dos santos e dos anjos.
Esta acção, diz a informação divulgada, pretende “proporcionar às instituições da Igreja uma dinâmica global de actuação na área do Inventário”. Incide nas matérias “inerentes ao trabalho de inventário, nos domínios do património móvel e integrado”, bem como nas “metodologias de análise, identificação e descrição”, pretendendo ajudar a desenvolver competências nas áreas da catalogação e classificação.
Embora prioritariamente destinada a técnicos da área, a acção de formação está aberta também a quem pretenda obter formação especializada no domínio da Iconografia Cristã.
A primeira sessão do curso decorre dia 5 de Fevereiro, estando as inscrições abertas ainda até à próxima quarta-feira, dia 31. Estruturada em 14 módulos, distribuídos pelas sete sessões temáticas, a acção de formação decorre em Fátima. O programa completo e outras informações estão disponíveis aqui.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Irmã Luísa Maria (1927-2018): um silêncio, uma presença, um sorriso

  
A irmã Louise-Marie, no mosteiro de Santa Maria, das Monjas Dominicanas, em 1996 
(foto de Luís Vasconcelos reproduzida do livro Vidas de Deus na Terra dos Homens)

Era alguém que, com a sua vida, falava do despojamento, da ternura e da entrega. A irmã Luísa Maria (Mary Alice Tobin, de baptismo), que integrava a comunidade do Mosteiro de Santa Maria, das Monjas Dominicanas, em Lisboa, morreu este sábado, 27 de Janeiro. Tinha 90 anos, completados a 3 de Setembro último (nascera nos Estados Unidos em 1927) e estava em Portugal há seis décadas, tendo integrado o mosteiro dominicano de Fátima e, depois, o de Lisboa. O seu funeral realiza-se esta segunda-feira, em Fátima.
A irmã Luísa Maria era uma mulher livre, um silêncio que se tornava presente pelo sorriso, disse este domingo, na eucaristia de corpo presente, o padre José Tolentino Mendonça. No mosteiro lisboeta, lugar de tranquilidade situado entre uma via rápida, prédios de habitação e escolas, Luísa Maria (ou Louise-Marie) foi, com as restantes irmãs da comunidade, o esteio de uma proposta que aliava interioridade e acolhimento, reflexão e debate.
Uma proposta que, durante largos anos, se concretizou nos Encontros do Lumiar: uma vez por mês, aos sábados, uma conferência seguida de debate construiu um património espiritual, teológico, bíblico e cultural raro no catolicismo português. Nos desugeria um cristianismo fundado nas suas raízes mais profundas, nos seus grandes místicos e mestres espirituais, e com uma atenção acurada à actualidade e aos sinais do tempo presente.
Por estar mais perto das pessoas, a irmã Luísa Maria dizia que gostava mais de estar no mosteiro de Lisboa do que no de Fátima. “A comunidade monástica deve estar inserida, viver com o povo, mantendo cada uma a sua identidade.”
No livro Vidas de Deus na Terra dos Homens (ed. Círculo de Leitores, 2000), publiquei uma reportagem sobre o mosteiro, resultante de dois textos publicados no Público (em 3 de Março de 1996 e 12 de Abril de 1998). Fica a seguir a reprodução dessa reportagem.

MÃOS DE AMOR E DE INVENÇÃO

Trabalham apenas o suficiente para viver: colagem de ícones, bolachas, compotas, bordados. São mãos de gestos de amor e invenção permanente. Mas o essencial é a contemplação e a oração. Deus, esse mistério. Estão em Lisboa, no meio da cidade, e às vezes têm que esperar o toque de alvorada do quartel vizinho para começar a rezar. Vivem em clausura, mas esta é apenas para se darem um sítio, nunca para se separarem das pessoas. Ficou para trás esse tempo, quando as grades não permitiam sequer beijar pais e irmãos.

A irmã Madalena ainda se recorda que esteve 13 anos sem ir a casa. Era a família que a ia visitar ao Mosteiro de Campanhã, no Porto. Os afectos trocavam-se apenas pelos olhos, as saudades morriam nas mãos. “Nas grades nem sequer cabiam umas mãos de criança, não podíamos dar as mãos.”
Mãos. As mesmas que hoje tecem o linho e bordam os panos e as toalhas que a irmã Madalena, 60 anos, semeou e teceu, ainda miúda, em casa. Juntamente com sua irmã – de sangue, de vida religiosa e, nesta manhã, também de trabalho – Maria Soledade. O pente do tear ainda foi feito pela avó. O linho, foram as duas desencantá-lo às arcas da família, em Riba de Mouro, Monção. E trouxeram-no para o Mosteiro de Santa Maria das Monjas Dominicanas, na Quinta do Frade, ao Lumiar, em Lisboa.

Os que “resgataram da morte” as vítimas do ódio nazi



Padre Joaquim Carreira, um dos portugueses  
Justos Entre as Nações” ontem evocados pelo Governo

O Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal divulgou ontem, sábado, 27, um comunicado assinalando o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, que se assinala anualmente desde 2005, no dia em que o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, “expoente máximo da barbárie nazi”, foi libertado.
Com este texto, o Governo pretendeu afirmar que “Portugal evoca, também, aqueles que impediram o extermínio de pessoas perseguidas pelo regime nazi. Homens e Mulheres que, pela sua coragem e altruísmo, resgataram da morte milhares de judeus e outras vítimas do ódio nazi. São disso exemplo os diplomatas portugueses Aristides de Sousa Mendes, Alberto Teixeira Branquinho e Carlos Sampaio Garrido, bem com o padre Joaquim Carreira.”
O texto acrescenta: “Para manter viva a memória daqueles que padeceram durante o Holocausto e para garantir que nunca mais venha acontecer, é preciso continuar a investir na educação, no respeito pelos direitos humanos, na defesa intransigente da dignidade de todas as pessoas e na luta contra o ódio, a intolerância, a xenofobia, o racismo, o antissemitismo e o preconceito. Este é um dever de todos.
O comunicado afirma ainda que enquanto membro observador da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, “Portugal reitera hoje o seu firme compromisso de manter viva a memória do Holocausto contribuindo para que não se repita nunca mais”. Por isso, o Governo quis juntar-se “a todos os que se recusam esquecer e que prestam homenagem às vítimas do extermínio e da desumanidade nazi”.

A propósito do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, a historiadora Irene Pimentel destacou a actualidade dos acontecimentos que levaram ao Holocausto, referindo o que se passa na Europa, nomeadamente em países como a Polónia ou a Hungria. E recordou a afirmação do historiador inglês Ian Kershaw: “Se o crime foi cometido por nazis, o caminho que levou a ele foi pavimentado pela indiferença.”
A crónica pode ser ouvida aqui.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

O Papa face aos abusos sexuais do clero: alguns sinais de intranquilidade


“Nos últimos anos, pensávamos que os líderes religiosos punidos tinham começado a corrigir os erros do passado. Estávamos enganados. O Sumo Pontífice aparentemente não aprendeu essa lição”, afirma o editorial desta terça-feira do National Catholic Reporter, aqui traduzido por Luísa Flores Somavilla para a página do Instituto Humanitas da Unisinos (Brasil). Eis o texto:

É difícil sequer imaginar o sofrimento que as vítimas de abuso sexual clerical tiveram de suportar. Depois de serem estupradas ou violentadas por pessoas que suas comunidades tinham lhes ensinado a ver como quase infalíveis, muitos foram mantidos em silêncio por décadas, envergonhadas ou apenas sem conseguir falar.
Quando realmente se pronunciaram, seus motivos foram questionados e sua integridade contestada. Foram atacadas, vitimadas novamente, em processos judiciais e pronunciamentos públicos, já que bispos, advogados diocesanos e autoridades da igreja negaram as acusações.
A história mostrou que a maioria das vítimas estava dizendo a verdade. Qualquer reforma que aconteceu na Igreja deve-se à sua determinação corajosa. A hierarquia foi apanhada em suas mentiras e humilhada, mas não antes de uma série de fiéis desconhecidos serem expulsos da Igreja Católica. O escândalo custou a autoridade moral da Igreja, sua credibilidade e bilhões de dólares.
Nos últimos anos, pensávamos que os líderes religiosos punidos tinham começado a corrigir os erros do passado. Estávamos enganados. O Sumo Pontífice aparentemente não aprendeu essa lição.
Em quatro dias, o Papa Francisco caluniou vítimas de abuso duas vezes. No voo papal do Peru, em 21 de janeiro, ele voltou a chamar o testemunho contra o bispo chileno Juan Barros Madrid de "calúnia". Apesar do relato de pelo menos três vítimas em contrário, ele voltou a dizer que não havia visto provas do envolvimento de Barros em um encobrimento para proteger o notório abusador Pe. Fernando Karadima.
Essas observações são no mínimo vergonhosas. No máximo, sugerem que Francisco poderia ter-se tornado cúmplice do encobrimento. O roteiro é bastante familiar: desacreditar o testemunho das vítimas, apoiar o prelado em questão e contar com o fato de a atenção pública passar para outra coisa. 

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Pierre Bühler: “Foi o Papa e não Lutero quem provocou a ruptura”



Pierre Bühler (Foto © Tiago Miranda, reproduzida daqui)

Nascido em 1950, o suíço Pierre Bühler é professor emérito de teologia da Universidade de Zurique e um dos mais importantes especialistas europeus em Lutero. Esteve em Lisboa em Novembro, no congresso internacional que assinalou os 500 anos do início da Reforma protestante. No dia em que os cristãos assinalam o final da semana pela unidade (cujo início, dia 18, foi aqui evocado), fica a leitura de Pierre Bühler sobre o contributo de Lutero.

“Para Lutero, a liberdade é, antes de mais, ser libertado, para ser livre”, diz Pierre Bühler.  O iniciador da Reforma só queria uma Igreja renovada, mas a excomunhão decretada pelo Papa levou-o a imaginar uma nova Igreja. “Nesse sentido, foi a autoridade católica que provocou a ruptura, não os reformadores.”

Houve jovens católicos a boicotar cerimónias evocativas da Reforma. O que falta ao diálogo ecuménico para ultrapassar tal intolerância?
– Esses grupos devem ser uma reacção integrista à separação das confissões. Por vezes, do lado católico, ouve-se que a separação deveria ser confessada como um erro... É a primeira vez que temos um centenário da Reforma celebrado em conjunto. Mas, em ambos os lados, há movimentos integristas que vivem ainda na oposição entre católicos e protestantes. Mas também há jovens católicos muito interessados no diálogo ecuménico com os protestantes.
A busca de Lutero e dos outros reformadores visava sobretudo a unidade: os reformadores nunca quiseram uma nova Igreja, eles queriam reformar a Igreja tal como ela era. Foi só porque houve uma excomunhão que Lutero teve de imaginar uma nova Igreja. Ele queria viver na Igreja como ela era, mas renovada. Nesse sentido, foi a autoridade católica que provocou a ruptura, não os reformadores.
(A entrevista pode ser lida aqui na íntegra)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Iria Hans Rosling dizer em Davos que as Nações Unidas estão loucas?





Se o médico e académico sueco Hans Rosling (27 de Julho de 1948 – 7 de Fevereiro de 2017) ainda estivesse vivo e fosse convidado para ir ao Fórum Económico Mundial que estes dias está a decorrer em Davos (Suíça), talvez fosse dizer que as Nações Unidas estavam loucas quando anunciaram o objectivo de erradicar a pobreza extrema para todas as pessoas até 2030, no âmbito dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável
Provavelmente, Hans Rosling também diria que não podemos continuar a ter um mundo em que mais de 80 por cento da riqueza criada em todo o mundo vai parar aos mais ricos, que representam apenas um por cento da população mundial, como nos diz o relatório da Oxfam divulgado no início desta semana. 
Olhando para as realidades das pessoas mais pobres, o objectivo de erradicar a pobreza extrema parece impossível, diz a apresentação deste vídeo, gravado há pouco mais de dois anos. Nesse ano, não houve chuva no Malawi, mas a muitas pessoas – como mostram alguns exemplos apontados por Hans Rosling – basta muito pouco, como uma pequena colheita de milho, para quebrar o ciclo vicioso da pobreza.
Quando, em Setembro de 2015, os Chefes de Estado ou Governo dos países do mundo estabeleceram os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ou ‘Agenda 2030’ e declararam a sua determinação em acabar com a pobreza e a fome, muitas pessoas poderiam abanar a cabeça e pensar como Astérix Estes romanos são doidos”.
O médico sueco voluntariou-se para ir trabalhar em Moçambique quando a descolonização deixou o país sem assistência médica. Muitas voltas depois acabou a ensinar saúde internacional no seu país e criou a página Gapminder na internet, onde ajuda a dar significado às estatísticas. 
Hans Rosling, que morreu há pouco menos de um ano, deixou um conjunto de mensagens fundamentadas de esperança e incentivo a persistir no combate às injustiças (iniquidades, como se diz habitualmente no campo da saúde) no acesso aos bens da terra e aos cuidados de saúde. 
No vídeo acima reproduzido, Hans Rosling mostra como tem sido a evolução de indicadores de saúde no ultimo século, o que significa viver com um dólar por dia ou como são as casas das pessoas que vivem com um ou dez dólares por dia. Mostra o que acontece quando essas pessoas estão doentes e como é importante olhar para a história de todo o século XX.
“Loucas estariam as nações se não quisessem acabar com a pobreza.” Assim, o objectivo de erradicar a pobreza extrema não é inatingível. Só o é, como explica Hans Rosling, porque a visão de muitas pessoas altamente letradas está atrasada em seis décadas. 

(Este texto teve o contributo de Cláudia Conceição; sobre o fórum de Davos, pode ler-se aqui, em inglês, o teor da intervenção do secretário-geral do Conselho Ecuménico de Igrejas, Olav Fykse Tveit, que falou sobre o perigo nuclear)


terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Lourdes Pintasilgo: mudar a vida e cuidar o futuro



Maria de Lourdes Pintasilgo (foto reproduzida daqui)

Uma homenagem nacional a Maria de Lourdes Pintasilgo, a edição de um conjunto de publicações e audições públicas em zonas mais afastadas dos grandes centros serão as iniciativas principais que a Fundação Cuidar o Futuro está a organizar, na sequência de uma proposta feita à Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade e à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), a propósito dos 40 anos da então Comissão da Condição Feminina (CCF), assinalados em Novembro último (antecessora da CIG, a CCF foi criada formalmente em Novembro de 1977, depois de Lourdes Pintasilgo a ter instituído, em regime de instalação, enquanto ministra dos Assuntos Sociais, em 1975).
A primeira realização deste ciclo de iniciativas foi a reedição do relatório Cuidar o Futuro, elaborado entre 1992 e 1996 pela Comissão Independente População e Qualidade de Vida, a que Maria de Lourdes Pintasilgo presidiu. Publicado em 1998, mas há muito indisponível no mercado, o relatório propunha o conceito de cuidado como central para a acção política e como síntese de um modo diferente de olhar para os problemas que afectam a humanidade – da pobreza à insegurança, passando pela privação dos direitos mais elementares. O texto antecipava, nessa altura vários dos graves problemas da actualidade, em âmbitos como as mudanças climáticas e o ambiente, as mulheres e as políticas demográficas, os cuidados de saúde e os novos desafios da educação, e a urgência de um novo contrato social.
O relatório foi já objecto de uma primeira apresentação pública, numa sessão evocativa que decorreu em Abrantes, no passado dia 18 de Janeiro, data em que Pintasilgo completaria 88 anos. Na ocasião, o professor universitário e deputado José Manuel Pureza referiu-se ao horizonte da acção da antiga primeira-ministra: “Mudar a vida” foi o seu lema. E nesse enunciado sintetizou os dois grandes pilares do que tem que ser uma política emancipadora. “Mudar…”: para ela, a política nunca foi uma arte do possível que seja perpetuação do que está, mas sim transformação social a partir da realidade inteira – a que é iluminada, a que é deixada na penumbra e a que é preciso inventar. “… a vida”: o que tem que ser mudado são simultaneamente as estruturas e as mentalidades, o micro e o macro, o íntimo e o social. Não se muda o campo socioeconómico sem mudar o olhar e não se muda o olhar se a relação de poder socioeconómica se mantiver inalterada.” (O texto de José Pureza pode ser lido aqui na íntegra)
A nova edição do livro (cuja capa se reproduz ao lado) conta com um Prefácio de Viriato Soromenho-Marques (do qual está disponível um excerto no último número do Jornal de Letras, datado de 17 de Janeiro), no qual este pensador sublinha os contributos de Lourdes Pintasilgo para a temática da superação da crise ambiental e do desenvolvimento sustentável, de que Cuidar o Futuro é exemplo: um modelo que permite “pensar de modo integrado os problemas” e o cruzamento interdisciplinar de “saberes e experiências científicas”; uma noção – a de “qualidade de vida” – como destaque da “importância da sustentabilidade como processo político e social dinâmico, envolvendo a participação do maior número possível de cidadãos, organizações e instituições”; uma ideia – a de cuidar do futuro – que traduz a colocação “no centro do debate e da acção pública a questão da justiça entre gerações”; e a “consciência de os grandes princípios só poderão mudar o mundo” se forem assumidos pelas pessoas, com “propostas que permitem gerar instrumentos efectivos, portadores de mudanças materiais na realidade”.