Crónicas
No último número da Voz da Verdade, comentando os textos da liturgia católica de domingo passado, Vítor
Gonçalves fazia uma pergunta: Conservar ou arriscar?
fazer render o que somos e temos
implica trabalho, risco, perigos, criatividade, abertura aos outros,
aprendizagem com os erros, tristezas e alegrias. São sinais de vida. Sem
coragem para explorar o desconhecido, para tentar o que nunca foi tentado, para
ensaiar mais e melhor a força do Evangelho, nunca saberemos o que Deus gostaria
de ter feito connosco!
(texto completo aqui)
No Público do último domingo,
frei Bento Domingues escrevia, respondendo também a uma pergunta – Regresso
à Barbárie?:
Dito isto, parece-me um abuso
responsabilizar a divindade pelas configurações sociais das religiões, mesmo
quando algumas gostem de exibir essa pretensão. Deus não é hindu, judeu,
budista, cristão, maometano, baha’i, etc.. Se fosse Ele a ditar os escritos
fundadores dessas religiões estaria, de facto, em concorrência consigo mesmo.
(texto completo aqui)
No DN de sábado passado,
Anselmo Borges escrevia sobre Moral, vítimas e Deus; transcreve-se a seguir o texto:
Após conflitos e condenações, a
Igreja reconheceu a legítima autonomia das realidades terrestres, o que
significa que, por exemplo, a ciência, a medicina, a política, a economia se
regem pelas suas própria leis, sem a tutela da religião. Sobretudo quando se
olha para o mundo islâmico, fica bem patente a importância desta autonomia
nomeadamente na política, exigindo a separação da Igreja e do Estado.
Também a moral é autónoma. Aliás,
na perspectiva cristã, autonomia e teonomia acabam por coincidir, na medida em
que, se Deus cria por amor, então a plena e adequada realização humana, que
deve constituir a norma e o critério da acção humana boa, coincide com a
vontade de Deus, cujo único interesse são as criaturas totalmente realizadas: a
vontade de Deus é o bem da criatura.
De qualquer modo, a exigência
moral não surge do facto de se ser crente ou não, mas da condição humana de
querer ser pessoa autêntica e plena, o que significa que, como escreveu A.
Torres Queiruga, "desde que um e outro queiram ser honestos, não
existe nada que no nível moral um crente deva fazer e um ateu não". Assim,
só para dar um exemplo, a propósito da jovem Brittany Maynard, que decidiu a
sua morte por suicídio assistido no passado dia 1, depois de os médicos lhe terem
diagnosticado um cancro incurável no cérebro, que lhe causaria uma morte
dolorosíssima: mesmo do ponto de vista cristão, está-se perante uma situação de
decisão moral legítima, no quadro da autonomia, que, aliás, como é sabido, o
famoso teólogo Hans Küng reclama também para si, ao colocar-se a mesma
possibilidade próxima: "Precisamente porque creio na vida eterna, posso,
quando for o tempo, com responsabilidade, decidir sobre o momento e o modo da
minha morte."
O que aí fica dito não quer dizer
que não haja relações entre moral e religião. Isso acontece, por exemplo,
quando se procura aprofundar o fundamento incondicional e definitivo da moral.
Neste sentido, veja-se este texto de Sigmund Freud, numa carta a um amigo:
"Pergunto-me a mim mesmo porque aspirei sempre a comportar-me com honra, a
mostrar consideração e afecto para com os outros, sempre que as circunstâncias
o permitiram.
Perguntei-me permanentemente o
porquê disto, mesmo depois de dar-me conta de que me prejudicava a mim mesmo e
de que choviam os golpes sobre mim, porque as pessoas são brutais e
traiçoeiras, e não fui capaz de dar uma resposta a mim mesmo, o que está longe
de ser razoável."
A Escola Crítica de Frankfurt é
particularmente sensível neste domínio. Assim, Max Horkheimer disse:
"Visto sob o aspecto meramente científico, o ódio não é pior do que o
amor, apesar de todas as diferenças sociofuncionais. Não existe nenhuma
argumentação lógica concludente pela qual não deva odiar, se, desse modo, não
me causo nenhuma desvantagem na vida social. Como pode fundamentar-se com
exactidão que não devo odiar, se isso me causa prazer? O positivismo não
encontra nenhuma instância transcendente aos homens que distinga entre
disponibilidade e afã de proveito, entre bondade e crueldade, avareza e entrega
de si mesmo. Também a lógica emudece: não reconhece primado algum à dimensão
moral. Todo o intento de fundamentar a moral em prudência terrena, em vez de
fazê-lo a partir do ponto de vista do Além - nem mesmo Kant resistiu sempre a
esta tendência -, baseia-se em ilusões harmonizadoras. Tudo o que tem relação
com a moral baseia-se, em última análise, na teologia."
Jürgen Habermas, que vê na
religião uma capacidade especial de mobilização moral: "Certamente, a
filosofia pode continuar a explicar ainda hoje o ponto de vista moral a partir
do qual imparcialmente julgamos algo como justo ou injusto; portanto, a razão
comunicativa não está de maneira nenhuma à mesma distância da moralidade e da
imoralidade. Mas coisa distinta é encontrar a resposta motivante à questão de
porque é que temos de ater-nos às nossas convicções morais, de porque é que
temos de ser morais. Neste aspecto, poderia talvez dizer-se que é vão querer
salvar um sentido incondicionado sem Deus."
Vínculo inevitável entre moral e
religião dá-se pela esperança, sobretudo quando se pensa nas vítimas inocentes.
Aliás, Kant, teorizando sobre a autonomia da moral, postulou Deus pela
exigência da esperança. Nessa linha, Paul Ricoeur falou "da carga da ética
e da consolação da religião". Por isso, segundo Walter Benjamin, não é
possível pensar a história sem teologia. E, neste contexto, Júrgen Habermas,
referindo-se às vítimas inocentes e à dívida da história para com elas, cita
Jens Glebe-Mõller: “Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros,
incluindo os mortos, então temos de reclamar uma realidade que esteja para lá
do aqui e do agora e que possa vincular-nos também para lá da nossa morte com
aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a esta
realidade a tradição cristã chama Deus.”
Sem comentários:
Enviar um comentário