Volta e meia, surgem notícias
sobre descobertas arqueológicas que vão “alterar” a imagem que temos de Jesus e
a “construção” da personagem que foi sendo feita ao longo dos séculos. Claro
que já houve descobertas destas. Os Manuscritos de Qumran, por exemplo,
ajudaram a entender o contexto do judaísmo que Jesus viveu.
Normalmente, as credenciais
científicas dessas supostas descobertas são reduzidas ou aproveitam
coincidências várias. Têm geralmente o efeito de provocar uma grande excitação entre
muitos meios de comunicação. Foi o que se passou há dois anos, por exemplo, com
um fragmento de um papiro onde se lia a frase “Jesus disse-lhes: ‘A minha
mulher...’”
Há dias, a excitação voltou a
repetir-se com um manuscrito encontrado na British Library por Barrie Wilson e
Simcha Jacobovici. Este último, realizador de documentários televisivos, já
ficara conhecido, há sete anos, por ter anunciado a descoberta do suposto
túmulo da família de Jesus – que depois os especialistas vieram denunciar como sendo de
autenticidade duvidosa.
Desta vez, o manuscrito encontrado
volta a ser a base para uma tese que, apesar de repetida, é “revolucionária”,
como dizia o Expresso/Revista de dia
15: Jesus foi casado e teve dois filhos (mas a notícia foi reproduzida em
muitos outros meios de comunicação, como se pode ver por este exemplo). O documento
analisado por Wilson e Jacobovici é uma cópia do século VI de um texto do
século I, intitulado A História Eclesiástica
de Zacharias Rhetor. O texto apresenta a história de um tal José, que tem
muitas semelhanças com a história de Jesus de Nazaré: origens humildes, coroado
“rei”, foi morto e ressuscitou. Além disso, José teria sido casado com Aseneth,
que para os autores é Maria Madalena...
Ticiano, Jesus e Maria Madalena (pormenor; imagem reproduzida daqui)
Para recordar os contornos desta
tese “revolucionária” – mesmo que repetida à exaustão e sem nada de científico
para a sustentar –, reproduzo a seguir um texto que publiquei no Público em 28 de Setembro de 2012, com o título Jesus foi casado? Talvez não. E isso importa? Talvez sim.
“Jesus disse-lhes:
‘A minha mulher...’” Esta frase, inscrita num fragmento de um papiro copta
ainda não rigorosamente datado e de proveniência desconhecida, ateou de novo o
debate: afinal, Jesus foi casado ou não?
E isso deveria ter
repercussão na atitude do cristianismo em relação às mulheres, tendo em conta
os textos fundadores e a doutrina de Jesus?
Antes de discutir esses
temas, há entretanto a questão do valor histórico do documento revelado por
Karen L. King. A investigadora da Harvard Divinity School foi a primeira a
reconhecer que é cedo para tirar conclusões.
O fragmento deverá datar
do século IV e, de acordo com King, é a tradução de um texto grego do século
II, num curto pedaço de papiro de cerca de quatro por oito centímetros (como um
cartão-de-visita). Nele podem ler-se várias frases incompletas (parte-se aqui
da tradução proposta para castelhano por António Piñero, especializado em
línguas e literatura do cristianismo primitivo e editor dos textos gnósticos da
Biblioteca de Nag Hammadi): “A minha
mãe deu-me a vida (...) os discípulos perguntaram a Jesus (...) negou. Maria é
digna disso (...) Jesus disse-lhes: a minha mulher (...) poderá ser minha
discípula.” Na última frase, mais estranha, lê-se: “Que os malvados rebentem
(...) no que me respeita, viverei com ela por (...) uma imagem.” A alusão aos
malvados diz Piñero que se pode referir à morte de Judas.
Quando apresentou o
papiro em Roma, na semana passada, King afirmou, citada pela AFP: “O julgamento
final quanto à veracidade deste documento depende de um exame mais aprofundado
e de outros testes sobre a composição da tinta.”
À Reuters, Carl R.
Holladay, professor de Novo Testamento na Universidade Emory (EUA), disse que a
descoberta é “obviamente importante”. Mas as circunstâncias que a revelaram
devem merecer cautelas da parte dos investigadores, avisou.
Que circunstâncias foram
essas? King contou que, há dois anos, recebeu uma mensagem de um coleccionador,
na sua caixa de email a pedir-lhe para traduzir um fragmento de papiro, em
copta, com uma referência à “mulher” de Jesus. King disse que o coleccionador
não sabe de onde provém o fragmento de papiro e que quer permanecer anónimo.
Jennifer Sheridan Moss,
presidente da Associação Americana de Papirologistas, afirmou à Reuters que a
instituição provavelmente não publicaria nenhum artigo sobre um documento do
qual desconhecesse a origem. Mas apesar de críticas sobre a avaliação
científica do artigo que apresenta o fragmento, ele vai ser publicado na The Harvard Theological Review.
Importância “muito
escassa”
Polémica histórica à
parte, o papiro traz alguma novidade ao debate sobre se Jesus foi casado? A frase
que mais polémica trouxe – “Jesus disse-lhes: a minha mulher (...) poderá ser
minha discípula” – não diz nada de novo. O espanhol António Piñero, um dos
maiores especialistas contemporâneos na matéria, diz ao Público que a importância do documento revelado por Karen L. King
“é muito escassa”.
Há uma dúzia de textos,
recorda, dos evangelhos copto-gnósticos da Biblioteca de Nag Hammadi que fazem
referências do género à eventual relação privilegiada de Jesus com Maria Madalena
– aquela que é mais apontada como a eventual mulher de Jesus. No seu blogue, o investigador tem colocado,
nos últimos dias, vários textos gnósticos referentes ao mesmo tema. [e voltou a
fazê-lo de novo, já neste mês de Novembro]
Os textos de Nag Hammadi
foram descobertos em 1945 na aldeia com o mesmo nome, situada perto de Luxor e
a 200 quilómetros a norte de Assuão. Os manuscritos de Nag Hammadi e os do Mar
Morto são as descobertas de textos antigos mais importantes da era
contemporânea.
Num dos textos de Nag
Hammadi, o Evangelho de Maria,
lê-se: “Pedro disse: ‘Maria, irmã: nós sabemos que o Salvador te apreciava mais
do que às outras mulheres. Dá-nos conta das palavras do Salvador que recordes,
que tu conheces e nós não, que nós não escutámos.’” No Evangelho de Filipe,
acrescenta-se: “E a companheira do [Salvador é] Maria Madalena. O [Salvador]
amava-a mais do que a todos os discípulos e beijava-a frequentemente na
[boca].”
Estas frases devem ser
lidas na cultura em que foram produzidas. O gnosticismo cristão dos primeiros
séculos era uma corrente que considerava Jesus apenas como “um ser puramente
espiritual e divino”, explica Piñero na introdução aos textos de Nag Hammadi. “Mas
para desempenhar a sua missão na terra [Cristo] introduz-se no corpo de um ser
humano especial, que é Seth ou Jesus de Nazaré, nascido de uma virgem.
Concretamente, este Jesus tem um corpo de aparência normal, mas na realidade é
puramente psíquico, material, sim, mas incorporal. (...) O corpo deste Jesus é
meramente aparente.”
Segundo volume (de três) da edição portuguesa
dos textos da Biblioteca de Nag Hammadi
Em declarações ao Público, Piñero explica que o texto
deverá ter origem num copista “de segunda ou terceira categoria, mas relacionado
com os textos de Nag Hammadi”. Quem fala, no texto, é o “revelador celestial
depois da sua ressurreição, cujo interesse não era em absoluto falar da sua
mulher na terra”. E um tão pequeno fragmento não autoriza que se diga que
estamos diante de uma cópia de um “original grego do século II”.
A própria Karen L. King
admitia, citada pela agência ENI (Notícias Ecuménicas Internacionais), que o
documento não manifesta qualquer evidência sobre se Jesus foi casado ou não.
Apenas pode revelar que os primeiros cristãos discutiam o assunto, disse. “A
mais antiga e mais fiável evidência histórica é totalmente silenciosa sobre o
estado marital de Jesus.” E acrescentava que o fragmento também pode traduzir
apenas linguagem figurada, mesmo quando se lê a frase “a minha mulher”.
Esta é, provavelmente, uma
das explicações mais seguras. É que, explica Antonio Piñero no seu livro Jesus y las Mujeres, os
gnósticos encaravam a sexualidade e a procriação como algo desprezível. No Evangelho dos Egípcios, outros
dos textos gnósticos do qual apenas se conhecem excertos, coloca-se Jesus a dizer
que a sua missão no mundo é “destruir as obras da mulher”. Quer dizer, explica
o investigador espanhol, “aniquilar a concupiscência, a saber, todo o desejo
sexual”.
Esta doutrina, denominada
encratismo (continência sexual absoluta), era defendida por vários grupos de
cristãos gnósticos. Piñero cita, aliás, no mesmo livros, outros textos
gnósticos que falam de Salomé e não de Madalena como a mulher de Jesus. Mas o
investigador espanhol diz que essas referências são todas de carácter
simbólico: “Os gnósticos gostam de metáforas sexuais para designar a união
espiritual forte, já que não encontram na natureza melhor metáfora para a
simbolizar.”
Ao Público, Piñero
acrescenta que este texto nada prova acerca de um eventual casamento de Jesus.
E muitos investigadores estão de acordo com esse facto: nada indica que isso
tenha acontecido. Na época, o casamento era normal, mas havia grupos de judeus
piedosos que não se casavam – os essénios de Qumran, por exemplo.
“Se Jesus tivesse mulher,
seria normal que os evangelhos canónicos referissem o facto", diz ao Público o padre Joaquim Carreira das
Neves, um dos mais destacados biblistas portugueses. E John P. Meier, que está
a publicar há anos Um Judeu
Marginal, uma investigação sobre a figura histórica de Jesus, acrescenta: “Não
podemos ter uma certeza absoluta (...). Mas os vários contextos (...) no Novo
Testamento e no judaísmo assinalam como hipótese mais verosímil a de que Jesus
permaneceu celibatário por motivos religiosos.”
Piñero nota que a
tradição dogmática de séculos sobre o celibato de Jesus foi, nos últimos
tempos, substituída “por uma nova certeza”. Para muita gente “de boa-fé mas
desgraçadamente ignorante do conteúdo real dos textos antigos”, Jesus foi
casado e isto tornou-se “quase um dogma de fé”. Ouvido pela AFP, o porta-voz da
Santa Sé, padre Federico Lombardi, disse que o papiro “não muda nada na visão
sobre Cristo e os evangelhos” e que não tem “qualquer influência sobre a
doutrina católica”.
Uma causa justa
Questão diferente é saber
se o que se lê nos textos dos evangelhos (canónicos ou gnósticos) deveriam
levar a uma outra visão sobre o papel da mulher no cristianismo. Citada pela
ENI, King afirmou que a descoberta poderia levar os crentes a repensar as suas
convicções sobre os primeiros cristãos e sobre os debates da época acerca do
casamento, do celibato e da família. Alguns desses modos de olhar ainda
influenciam questões como o celibato dos padres ou a interdição da ordenação de
mulheres.
“A questão da mulher na
Igreja é um problema de razão. Os gnósticos tiveram uma falência de razão”, ao
desconsiderar a mulher. “E a Igreja, ao longo dos séculos, também acabou por
ter uma falência de razão”, comenta Carreira das Neves.
Piñero acusa King de “propaganda
feminista ou pior, talvez, de propaganda pessoal”. Porque citações deste género
são tomadas como argumentos para defender uma outra atitude, nomeadamente da
Igreja Católica, para com a mulher. E a divulgação do documento, na forma como
foi feita, é “quase uma montagem sensacionalista”, ainda que para servir uma
causa justa: chamar a atenção da Igreja sobre a sua estrutura “masculina”, “machista”
e “injusta”, critica o investigador espanhol.
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