quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Jesus foi casado? Talvez não.E isso importa? Talvez sim

Volta e meia, surgem notícias sobre descobertas arqueológicas que vão “alterar” a imagem que temos de Jesus e a “construção” da personagem que foi sendo feita ao longo dos séculos. Claro que já houve descobertas destas. Os Manuscritos de Qumran, por exemplo, ajudaram a entender o contexto do judaísmo que Jesus viveu.
Normalmente, as credenciais científicas dessas supostas descobertas são reduzidas ou aproveitam coincidências várias. Têm geralmente o efeito de provocar uma grande excitação entre muitos meios de comunicação. Foi o que se passou há dois anos, por exemplo, com um fragmento de um papiro onde se lia a frase “Jesus disse-lhes: ‘A minha mulher...’”
Há dias, a excitação voltou a repetir-se com um manuscrito encontrado na British Library por Barrie Wilson e Simcha Jacobovici. Este último, realizador de documentários televisivos, já ficara conhecido, há sete anos, por ter anunciado a descoberta do suposto túmulo da família de Jesus – que depois os especialistas vieram denunciar como sendo de autenticidade duvidosa.
Desta vez, o manuscrito encontrado volta a ser a base para uma tese que, apesar de repetida, é “revolucionária”, como dizia o Expresso/Revista de dia 15: Jesus foi casado e teve dois filhos (mas a notícia foi reproduzida em muitos outros meios de comunicação, como se pode ver por este exemplo). O documento analisado por Wilson e Jacobovici é uma cópia do século VI de um texto do século I, intitulado A História Eclesiástica de Zacharias Rhetor. O texto apresenta a história de um tal José, que tem muitas semelhanças com a história de Jesus de Nazaré: origens humildes, coroado “rei”, foi morto e ressuscitou. Além disso, José teria sido casado com Aseneth, que para os autores é Maria Madalena...



Ticiano, Jesus e Maria Madalena (pormenor; imagem reproduzida daqui)

Para recordar os contornos desta tese “revolucionária” – mesmo que repetida à exaustão e sem nada de científico para a sustentar –, reproduzo a seguir um texto que publiquei no Público em 28 de Setembro de 2012, com o título Jesus foi casado? Talvez não. E isso importa? Talvez sim.

“Jesus disse-lhes: ‘A minha mulher...’” Esta frase, inscrita num fragmento de um papiro copta ainda não rigorosamente datado e de proveniência desconhecida, ateou de novo o debate: afinal, Jesus foi casado ou não?
E isso deveria ter repercussão na atitude do cristianismo em relação às mulheres, tendo em conta os textos fundadores e a doutrina de Jesus?
Antes de discutir esses temas, há entretanto a questão do valor histórico do documento revelado por Karen L. King. A investigadora da Harvard Divinity School foi a primeira a reconhecer que é cedo para tirar conclusões. 

O fragmento deverá datar do século IV e, de acordo com King, é a tradução de um texto grego do século II, num curto pedaço de papiro de cerca de quatro por oito centímetros (como um cartão-de-visita). Nele podem ler-se várias frases incompletas (parte-se aqui da tradução proposta para castelhano por António Piñero, especializado em línguas e literatura do cristianismo primitivo e editor dos textos gnósticos da Biblioteca de Nag Hammadi): “A minha mãe deu-me a vida (...) os discípulos perguntaram a Jesus (...) negou. Maria é digna disso (...) Jesus disse-lhes: a minha mulher (...) poderá ser minha discípula.” Na última frase, mais estranha, lê-se: “Que os malvados rebentem (...) no que me respeita, viverei com ela por (...) uma imagem.” A alusão aos malvados diz Piñero que se pode referir à morte de Judas. 
Quando apresentou o papiro em Roma, na semana passada, King afirmou, citada pela AFP: “O julgamento final quanto à veracidade deste documento depende de um exame mais aprofundado e de outros testes sobre a composição da tinta.”
À Reuters, Carl R. Holladay, professor de Novo Testamento na Universidade Emory (EUA), disse que a descoberta é “obviamente importante”. Mas as circunstâncias que a revelaram devem merecer cautelas da parte dos investigadores, avisou. 
Que circunstâncias foram essas? King contou que, há dois anos, recebeu uma mensagem de um coleccionador, na sua caixa de email a pedir-lhe para traduzir um fragmento de papiro, em copta, com uma referência à “mulher” de Jesus. King disse que o coleccionador não sabe de onde provém o fragmento de papiro e que quer permanecer anónimo. 
Jennifer Sheridan Moss, presidente da Associação Americana de Papirologistas, afirmou à Reuters que a instituição provavelmente não publicaria nenhum artigo sobre um documento do qual desconhecesse a origem. Mas apesar de críticas sobre a avaliação científica do artigo que apresenta o fragmento, ele vai ser publicado na The Harvard Theological Review.

Importância “muito escassa”

Polémica histórica à parte, o papiro traz alguma novidade ao debate sobre se Jesus foi casado? A frase que mais polémica trouxe – “Jesus disse-lhes: a minha mulher (...) poderá ser minha discípula” – não diz nada de novo. O espanhol António Piñero, um dos maiores especialistas contemporâneos na matéria, diz ao Público que a importância do documento revelado por Karen L. King “é muito escassa”. 
Há uma dúzia de textos, recorda, dos evangelhos copto-gnósticos da Biblioteca de Nag Hammadi que fazem referências do género à eventual relação privilegiada de Jesus com Maria Madalena – aquela que é mais apontada como a eventual mulher de Jesus. No seu blogue, o investigador tem colocado, nos últimos dias, vários textos gnósticos referentes ao mesmo tema. [e voltou a fazê-lo de novo, já neste mês de Novembro]
Os textos de Nag Hammadi foram descobertos em 1945 na aldeia com o mesmo nome, situada perto de Luxor e a 200 quilómetros a norte de Assuão. Os manuscritos de Nag Hammadi e os do Mar Morto são as descobertas de textos antigos mais importantes da era contemporânea. 
Num dos textos de Nag Hammadi, o Evangelho de Maria, lê-se: “Pedro disse: ‘Maria, irmã: nós sabemos que o Salvador te apreciava mais do que às outras mulheres. Dá-nos conta das palavras do Salvador que recordes, que tu conheces e nós não, que nós não escutámos.’” No Evangelho de Filipe, acrescenta-se: “E a companheira do [Salvador é] Maria Madalena. O [Salvador] amava-a mais do que a todos os discípulos e beijava-a frequentemente na [boca].”
Estas frases devem ser lidas na cultura em que foram produzidas. O gnosticismo cristão dos primeiros séculos era uma corrente que considerava Jesus apenas como “um ser puramente espiritual e divino”, explica Piñero na introdução aos textos de Nag Hammadi. “Mas para desempenhar a sua missão na terra [Cristo] introduz-se no corpo de um ser humano especial, que é Seth ou Jesus de Nazaré, nascido de uma virgem. Concretamente, este Jesus tem um corpo de aparência normal, mas na realidade é puramente psíquico, material, sim, mas incorporal. (...) O corpo deste Jesus é meramente aparente.”


Segundo volume (de três) da edição portuguesa 
dos textos da Biblioteca de Nag Hammadi

Em declarações ao Público, Piñero explica que o texto deverá ter origem num copista “de segunda ou terceira categoria, mas relacionado com os textos de Nag Hammadi”. Quem fala, no texto, é o “revelador celestial depois da sua ressurreição, cujo interesse não era em absoluto falar da sua mulher na terra”. E um tão pequeno fragmento não autoriza que se diga que estamos diante de uma cópia de um “original grego do século II”.
A própria Karen L. King admitia, citada pela agência ENI (Notícias Ecuménicas Internacionais), que o documento não manifesta qualquer evidência sobre se Jesus foi casado ou não. Apenas pode revelar que os primeiros cristãos discutiam o assunto, disse. “A mais antiga e mais fiável evidência histórica é totalmente silenciosa sobre o estado marital de Jesus.” E acrescentava que o fragmento também pode traduzir apenas linguagem figurada, mesmo quando se lê a frase “a minha mulher”. 
Esta é, provavelmente, uma das explicações mais seguras. É que, explica Antonio Piñero no seu livro Jesus y las Mujeres, os gnósticos encaravam a sexualidade e a procriação como algo desprezível. No Evangelho dos Egípcios, outros dos textos gnósticos do qual apenas se conhecem excertos, coloca-se Jesus a dizer que a sua missão no mundo é “destruir as obras da mulher”. Quer dizer, explica o investigador espanhol, “aniquilar a concupiscência, a saber, todo o desejo sexual”. 
Esta doutrina, denominada encratismo (continência sexual absoluta), era defendida por vários grupos de cristãos gnósticos. Piñero cita, aliás, no mesmo livros, outros textos gnósticos que falam de Salomé e não de Madalena como a mulher de Jesus. Mas o investigador espanhol diz que essas referências são todas de carácter simbólico: “Os gnósticos gostam de metáforas sexuais para designar a união espiritual forte, já que não encontram na natureza melhor metáfora para a simbolizar.”
Ao Público, Piñero acrescenta que este texto nada prova acerca de um eventual casamento de Jesus. E muitos investigadores estão de acordo com esse facto: nada indica que isso tenha acontecido. Na época, o casamento era normal, mas havia grupos de judeus piedosos que não se casavam – os essénios de Qumran, por exemplo. 
“Se Jesus tivesse mulher, seria normal que os evangelhos canónicos referissem o facto", diz ao Público o padre Joaquim Carreira das Neves, um dos mais destacados biblistas portugueses. E John P. Meier, que está a publicar há anos Um Judeu Marginal, uma investigação sobre a figura histórica de Jesus, acrescenta: “Não podemos ter uma certeza absoluta (...). Mas os vários contextos (...) no Novo Testamento e no judaísmo assinalam como hipótese mais verosímil a de que Jesus permaneceu celibatário por motivos religiosos.”
Piñero nota que a tradição dogmática de séculos sobre o celibato de Jesus foi, nos últimos tempos, substituída “por uma nova certeza”. Para muita gente “de boa-fé mas desgraçadamente ignorante do conteúdo real dos textos antigos”, Jesus foi casado e isto tornou-se “quase um dogma de fé”. Ouvido pela AFP, o porta-voz da Santa Sé, padre Federico Lombardi, disse que o papiro “não muda nada na visão sobre Cristo e os evangelhos” e que não tem “qualquer influência sobre a doutrina católica”. 

Uma causa justa

Questão diferente é saber se o que se lê nos textos dos evangelhos (canónicos ou gnósticos) deveriam levar a uma outra visão sobre o papel da mulher no cristianismo. Citada pela ENI, King afirmou que a descoberta poderia levar os crentes a repensar as suas convicções sobre os primeiros cristãos e sobre os debates da época acerca do casamento, do celibato e da família. Alguns desses modos de olhar ainda influenciam questões como o celibato dos padres ou a interdição da ordenação de mulheres. 
“A questão da mulher na Igreja é um problema de razão. Os gnósticos tiveram uma falência de razão”, ao desconsiderar a mulher. “E a Igreja, ao longo dos séculos, também acabou por ter uma falência de razão”, comenta Carreira das Neves. 
Piñero acusa King de “propaganda feminista ou pior, talvez, de propaganda pessoal”. Porque citações deste género são tomadas como argumentos para defender uma outra atitude, nomeadamente da Igreja Católica, para com a mulher. E a divulgação do documento, na forma como foi feita, é “quase uma montagem sensacionalista”, ainda que para servir uma causa justa: chamar a atenção da Igreja sobre a sua estrutura “masculina”, “machista” e “injusta”, critica o investigador espanhol.

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