Templo da paróquia de São Pedro, da Igreja Lusitana,
onde decorreu a sessão de segunda-feira
(foto reproduzida daqui)
Foi refugiado, emigrante e conspirador. Nasceu em Málaga
(sul de Espanha), cerca de 1800, chegando a ser cónego da catedral, vivendo
depois em várias cidades e países: Gibraltar, Tânger, Brasil e Inglaterra.
Vicente Gomez y Tojar acabaria em Portugal, onde se tornaria o líder da
primeira comunidade protestante portuguesa, depois de ter deixado o catolicismo
e ter aderido às ideias liberais.
A sua história foi contada esta segunda-feira pelo pastor
António Costa Barata, da Assembleia de Deus, numa sessão evocativa do primeiro culto da Capela para a Promulgação do Santo
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, a comunidade liderada por Gomez.
O acto fundador decorreu no dia 10 de
Novembro de 1839 (fez ontem 175 anos), no terceiro andar do nº 81 da Rua Nova do Almada, em
Lisboa (quase à esquina com as Escadinhas de São Francisco), perante 110 pessoas.
Dessas, só 31 assinaram o registo. No culto inaugural, em que foi seguido o
ritual anglicano da Igreja de Inglaterra, foi baptizado o filho de Vicente
Gomez e da inglesa Anna Pratt, com quem o espanhol casara durante a sua
permanência na Inglaterra, entre 1831 e 1833.
Contou o pastor Barata que Gomez estudou Filosofia,
Medicina e Teologia. Em 1825, aderiu ao movimento liberal, decisão que lhe
traria problemas e marcaria em definitivo a sua vida. E que o levaria mesmo, em
1826, a viver exilado e emigrado, entre Gibraltar, Tânger e o Brasil, onde
esteve até meados de 1830.
Regressado a Gibraltar, Gomez envolveu-se numa
conspiração liberal liderada por José Maria Torrijos, que tentou tomar a cidade
de Málaga. Mas o levantamento foi descoberto e vários dos conspiradores
fuzilados. Gomez escapou e decidiu ir para Inglaterra, onde foi reconhecido o
seu grau de presbítero. Enviado para Portugal, com o apoio da Sociedade
Missionária para a Europa, Gomez ficaria no país de 1833 a 1874, ano em que
morreu.
Em Lisboa, a sua principal actividade foi a criação e
liderança daquela que se tornaria a primeira comunidade protestante portuguesa
– já havia no país comunidades inglesas e alemãs, por exemplo. A sua acção
pastoral – que chegou a cidades como Setúbal, Porto e Viana do Castelo, entre
outras – repartia-se essencialmente pela visitação aos fiéis, a celebração de
baptismos e casamentos, a pregação do Evangelho e a realização de serviços
fúnebres. Um dos casamentos que Gomez celebrou, recordou ainda António Costa
Barata, foi o de outro ex-padre católico, Porfírio de Carvalho e Melo, com
Maria Amália de Sousa Baptista, a 4 de Fevereiro de 1842.
O reverendo Gomez y Tojar e a sua mulher tiveram também
contactos com a Sociedade Missionária Wesleyana (Metodista) e com a Sociedade Bíblica
Britânica e Estrangeira. Mas a sua queda para a divulgação da Bíblia não seria
muita, diz o pastor Barata: em Portugal, apesar de ser correspondente da
Sociedade Bíblica, Gomez apenas distribuiu meia dúzia de Bíblias durante seis
meses...
A par da sua actividade religiosa, Gomez continuou a
relacionar-se com políticos liberais – entre os quais Quintino de Avelar, José
Estêvão Coelho de Magalhães ou Latino Coelho. Em 1852, foi proibido de pregar
na sua Capela. Não se sabe ainda a razão que terá levado à proibição, mas pouco
antes fora promulgado um novo Código Penal, que estabelecia limites à acção de
comunidades religiosas não-católicas.
Timóteo Cavaco, secretário-geral da Sociedade Bíblica
Portuguesa, que interveio na mesma sessão, explica ao RELIGIONLINE que a ordem
de proibir a pregação de Gomez pode ter tido a ver, sobretudo, com o episódio
dos protestantes madeirenses, liderados pelo médico inglês Robert Kalley – a comunidade que, graças ao papel de benemérito e formador que o
médico exercera, crescera exponencialmente, acabando perseguida e expulsa da
Madeira e do país (a história é contada no livro Madeirenses Errantes, de
Ferreira Fernandes).
Na Câmara dos Pares, chegou a haver acusações contra o “hespanhol
apostata”, como, a 2 de Agosto de 1858, o marquês de Valada se referiu a Vicente
Gomez y Tojar.
Decidido a prosseguir o ministério na clandestinidade,
Gomez ainda faria polémica três anos depois: ao publicar um artigo no jornal O Português, houve quem se voltasse
contra ele, chegando a haver mesmo quem o acusasse de ser o “Judas” que teria
denunciado os conspiradores de Málaga.
Os apoios de que Vicente Gomez y Tojar dispunha foram
rareando, até acabarem em 1861. O facto criou-lhe dificuldades de sobrevivência,
a que a família também não escapou. Chegou a circular o boato, conta ainda
Costa Barata, de que Gomez, já doente, teria voltado ao catolicismo. Mas o
próprio, já sem fala, escreveu que queria ser inumado com as vestes distintivas
de presbítero episcopaliano. A sua vontade foi cumprida.
Um outro espanhol, Ângel Herreros de Mora (1815-1876), retomaria,
em 1867, a tradição protestante episcopal, depois da diluição da comunidade que
Gomez y Tojar criara. Mora teve um percurso muito semelhante ao de Gomez: padre
católico, aderiu ao jansenismo em 1843, abandonando a Igreja de Roma em 1850.
Timóteo Cavaco citava outro pioneiro do protestantismo
português, Eduardo Moreira, para recordar o percurso de Mora. Dizia ele: “enquanto
se ia extinguindo obscuramente a missão do Cónego Gomez [...] nascia em semelhante
penumbra a de D. Ângelo.”
Mora dinamizou a criação da chamada Igreja Evangélica Espanhola
(e só por isso autorizada, por decreto do Marechal Saldanha, de 5 de Agosto de
1870). Mas o fundador viria a morrer seis anos depois. Só depois disso, já na
década de 1880, e sob a liderança do pastor Henrique Ribeiro – antigo abade de Silgueiros, no bispado de
Viseu, e irmão do político e literato oitocentista, Tomás Ribeiro – é que a comunidade se lançou
na construção do primeiro templo protestante português construído de raiz – a Igreja de São Pedro, onde se realizou a sessão desta segunda-feira.
Para a
construção, contribuiu a generosidade do benemérito John Cleif e a autorização
e o parecer positivo de Frederico Ressano Garcia, então no cargo de Engenheiro-Chefe
da Repartição Técnica da Câmara Municipal de Lisboa. “Homem de pensamento
liberar e visão arrojada, este técnico que foi também deputado, par do reino e
ministro, deu um notável contributo à criação de património público protestante
em Portugal, o qual é infelizmente escasso passados 130 anos deste pontapé de
saída auspicioso”, notava Timóteo Cavaco.
1 comentário:
Bom artigo. Obrigado.
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