Crónica
Ilustração de Manoel de Barros, reproduzida
daqui, onde também
se pode ver o trailer do filme sobre
o poeta Só Dez Por Cento é Mentira
e aceder a ligações para poemas do autor de Arranjos
para Assobio
Hoje,
na sua crónica d’Os
Dias da Semana, no Diário do Minho, que a seguir se transcreve, Eduardo Jorge Madureira Lopes escreve
sobre Manoel de Barros, cuja morte já foi referida aqui no blogue. Os interessados podem ler as quatro páginas do caderno especial que o
jornal brasileiro O Povo dedicou
ao poeta que “deu voz ao ínfimo da vida”.
Texto de Eduardo Jorge Madureira
Os
negócios com humanos estão em tempos favoráveis. Entre os mais lucrativos,
encontram-se os relativos ao tráfego (de tráfico falaremos noutra ocasião) de
pessoas. No hemisfério sul, os lugares nos barcos, que, quando não naufragam, a
Europa enxota, têm preços cada vez mais elevados. Até para escapar à miséria –
da fome, umas vezes; da guerra, outras; das duas, frequentemente –, é preciso
dispor de dinheiro em abundância e quase sempre, todavia, insuficiente. Para
ser admitido na casta gold de
cidadania, que se inventou no lado norte ocidental do planeta, é requerida riqueza
muito maior ou muito maior astúcia. O mundo parece de feição para quem fomenta,
beneficia e gaba o comércio de pessoas.
Mas
há quem dedique uma vida inteira a valorizar o que não tem valor. É o caso de Manoel
de Barros, que morreu na quinta-feira, com 97 anos, um dos mais originais
criadores da literatura de língua portuguesa contemporânea. Na
sexta-feira, os jornais brasileiros deram a notícia na primeira página e, em alguns
casos, como o de O Povo, de
Fortaleza, publicaram cadernos especiais com textos de Manoel de Barros. Um
título acertado, de O Popular, do
município de Goiânia, dizia: “O país perde um dos seus maiores poetas”. Não
erraria se tivesse acrescentado que a perda é da língua portuguesa.
O
poeta brasileiro foi um dos mais singulares cultores de “pessoas
desimportantes”, de “coisas que não levam a nada”, do “que você não pode vender
no mercado”, para referir alguns exemplos que se encontram na lista do que importa
à poesia. Do que é, pois, verdadeiramente importante. “Todas as coisas
apropriadas ao abandono me religam / a Deus / Senhor, eu tenho orgulho do
imprestável!”, diz Manoel de Barros numa parte de um poema.
Louvar
aquilo em que, quase sempre, não se repara ou que o mundo, habitualmente,
desdenha, oferecendo a sabedoria de uma maneira de ver as coisas e as pessoas,
é o que faz o poeta em “Matéria de poesia”:
“Todas
as coisas cujos valores podem ser / disputados no cuspe à distância / servem
para poesia // O homem que possui um pente / e uma árvore / serve para poesia
// Terreno de 10 x 20, sujo de mato – os que / nele gorjeiam: detritos
semoventes, latas / servem para poesia // Um chevrolé gosmento / Colecção de
besouros abstémios / O bule de Braque sem boca / são bons para poesia // As
coisas que não levam a nada / têm grande importância / Cada coisa ordinária é
um elemento de estima // Cada coisa sem préstimo / tem seu lugar / na poesia ou
na geral // O que se encontra em ninho de joão-ferreira: / caco de vidro,
garampos, / retratos de formatura, / servem demais para poesia // As coisas que
não pretendem, como / por exemplo: pedras que cheiram / água, homens / que
atravessam períodos de árvore, / se prestam para poesia // Tudo aquilo que nos
leva a coisa nenhuma / e que você não pode vender no mercado / como, por
exemplo, o coração verde / dos pássaros, / serve para poesia // As coisas que
os líquenes comem / – sapatos, adjetivos – / têm muita importância para os
pulmões / da poesia // Tudo aquilo que a nossa / civilização rejeita, pisa e
mija em cima, / serve para poesia // Os loucos de água e estandarte / servem
demais / O traste é ótimo // O pobre-diabo é colosso // Tudo que explique / o
alicate cremoso / e o lodo das estrelas / serve demais da conta // Pessoas
desimportantes / dão para poesia / qualquer pessoa ou escada // Tudo que
explique / a lagartixa da esteira / e a laminação de sabiás / é muito
importante para a poesia // O que é bom para lixo é bom para poesia //
Importante sobremaneira é a palavra repositório; / a palavra repositório eu
conheço bem: / tem muitas repercussões / como um algibe entupido de silêncio /
sabe a destroços // As coisas jogadas fora // têm grande importância / – como
um homem jogado fora // Aliás é também objecto de poesia / saber qual o período
médio / que um homem jogado fora / pode permanecer na terra sem nascerem / em
sua boca as raízes da escória // As coisas sem importância são bens de poesia
// Pois é assim que um chevrolê gosmento chega / ao poema, e as andorinhas de junho.”
O
poeta cumpriu o que, num poema, diz que o Padre Ezequiel – o primeiro professor
de agramática – lhe augurou aos 13 anos: carregar “para o resto da vida um
certo gosto por nadas”. Um milagre, certamente.
P.S.:
Com alguma sorte, ainda se encontrará em algumas livrarias a Poesia Completa, de Manoel de Barros,
que a Caminho editou em 2011.
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