Foram
os anos de ouro da arquitectura religiosa portuguesa, assim o define o título
da tese de doutoramento que, no passado dia 28 de Outubro, foi defendida pelo
arquitecto João Alves da Cunha na Faculdade de Arquitectura da Universidade de
Lisboa. A definição do título é esclarecedora acerca da importância da tese e
do Movimento de Renovação de Arte Religiosa (MRAR), que ela pretende retratar.
Tendo em conta essa importância, RELIGIONLINE publica a seguir, por deferência
do seu autor, excertos das conclusões e da introdução, por esta ordem, deixando
para o final a explicação dos aspectos metodológicos e das razões que levaram
João Alves da Cunha a interessar-se pelo tema.
O
autor da tese é também membro do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura,
da Igreja Católica. Os subtítulos são da responsabilidade do RELIGIONLINE.
Foram aqui omitidas as notas de rodapé.
Texto
de João Alves da Cunha
“A História vale na
medida em que pode resolver os problemas do presente e na medida em que se
torna um auxiliar e não uma obsessão.” (Fernando Távora, 1947)
O Movimento de Renovação da Arte Religiosa foi um acontecimento único, verdadeiramente “filho do seu tempo”,
consequência de episódios que o antecederam e das circunstâncias que se viveram
durante a sua existência. (...) António Freitas Leal, P. António dos Reis
Rodrigues, Flórido de Vasconcelos, Henrique Albino, João Braula Reis, João Correia Rebelo, João de Almeida, José Maya
Santos, Madalena Cabral, Maria José de Mendonça e Nuno Teotónio Pereira ficam
para a história como tendo sido os sócios fundadores do MRAR, cuja organização
inicial foi profundamente influenciada pela estrutura de duas organizações que
lhes eram próximas –a suíça Sociedade de São Lucas que conheciam através de
João de Almeida e a Acção Católica Portuguesa.
O grupo sempre afirmou explicitamente a sua formação católica, mas ao
longo de toda a sua existência fez questão de se manter como um movimento
independente da orgânica oficial da Igreja, como forma de poder relacionar-se e
atrair pessoas de outros meios. No entanto, o núcleo do MRAR nunca perdeu o
carácter “familiar” ou de pequeno grupo de amigos.
(...) quando
fundaram o MRAR propuseram um programa ambicioso: realizar atividades internas para sua valorização doutrinal e técnica,
efetuar reuniões de caráter espiritual para desenvolvimento da sua vida cristã,
organizar exposições, cursos e conferências, editar publicações, estampas e
gravuras, dar pareceres sobre todos os assuntos relacionados com arte e
arquitetura religiosa, defender a execução de obras de arte sacra por artistas
competentes e promover a realização de concursos. O objetivo a alcançar era tão
vasto que é natural que na avaliação que faziam da sua ação considerassem que
muito tinha ficado por fazer. No entanto, a realidade é que muito fizeram ao
longo da existência do Movimento. Fazendo uso do pouco tempo e dos reduzidos
meios que tinham disponíveis, os membros do MRAR conseguiram mudar mentalidades
e contribuir para a renovação cultural da Igreja, num processo que afirmou e
consolidou a construção da arquitetura religiosa moderna em Portugal. Para isso
foi fundamental o estudo e reflexão que eles próprios realizaram, que passou
pela consulta e leitura de livros e revistas internacionais, pelas visitas a
igrejas no estrangeiro e pela relação próxima com padres e seminaristas, o que
lhes conferiu um profundo conhecimento da temática, bem como uma capacidade
particular para abordar o programa e projetar igrejas.
Um pensamento
construído
No
entanto, o pensamento arquitetónico e litúrgico do MRAR não nasceu logo com a
fundação do Movimento, mas foi sendo construído ao longo do tempo, num primeiro
momento mais a nível teórico que prático, uma vez que os projetos eram muitos
limitados. A construção das igrejas de Águas e de Moscavide e da capela do
Picote foram por isso fundamentais para a definição da sua proposta, que
começou por ganhar corpo em meio rural. O tempo do MRAR foi um tempo de
transição na Igreja muito marcado pela realização do Concílio Vaticano II, pelo
que a construção em meio urbano das igrejas modernas propostas pelo MRAR acabou
por ter de esperar pela sua vez, mas assim que se tornou possível deu origem a
igrejas marcadas por um novo programa e por um novo conceito eclesiológico. O
desejo de serviço à cidade levou à edificação já não de templos mas de centros
paroquiais, onde sobressaía o volume da igreja, mas sem qualquer
monumentalidade ou tentativa de domínio sobre o território. A linguagem
plástica utilizada era a do seu tempo, feita de materiais e técnicas modernas
de construção, mas nenhuma forma ou “cara de igreja” foi estabelecida
previamente pelo MRAR. Cada edifício era único e a sua forma resultava do
contexto rural ou urbano em que se inseria. A palavra-chave era integração. As
igrejas projetadas por Luiz Cunha para Fátima, Negrelos e Póvoa do Valado
retratam bem este pensamento arquitetónico do MRAR: no ambiente urbano
descaracterizado de Fátima, Luiz Cunha optou pela construção de uma igreja em
betão à vista, no território nortenho recorreu à alvenaria de granito
aparelhado e na zona de Aveiro fez uso do material local, tijolo de burro,
aplicado tradicionalmente como revestimento. Estas três obras muito distintas
na forma, mas próximas na conceção litúrgica e arquitetónica, acabaram assim
por contribuir de um modo especial para a confirmação das virtudes da
integração arquitetónica de cada obra no seu meio ambiente como defendia o
MRAR.
Quanto ao entendimento do espaço interno de uma igreja, o MRAR promoveu
o funcionalismo litúrgico, pelo que defendeu a
afirmação de um lugar próprio para cada função como forma de a valorizar
litúrgica e pastoralmente. No entanto, devido à primazia que dava à celebração
eucarística – que considerava como a função primeira da igreja -, o seu espaço
litúrgico era totalmente orientado para o altar principal, peça central que
predominava sobre todos os restantes elementos da igreja. Havia,
consequentemente, uma grande preocupação com a boa visualização do altar, pelo
que os espaços tinham de ser abertos, amplos e libertos de pilares, de modo a
permitir uma proximidade visual do altar, mas não necessariamente física, pois
considerava-se que se tinha de assegurar a hierarquia do espaço litúrgico, com
uma distinção clara entre o presbitério e o lugar dos fiéis. De modo a acentuar
a centralidade do altar, o MRAR defendeu também o despojamento decorativo –
principalmente da zona do presbitério - para impedir a distração dos fiéis. As
suas igrejas possuíam assim poucos elementos artísticos, os quais eram
posicionados em locais pastoralmente estudados. Estes eram sempre obras de
autor, de grande qualidade artística, pois o MRAR opunha-se às peças de série.
No entanto, as obras de arte tinham de partilhar o seu espaço com a
arquitetura, pois o MRAR considerava que a componente artística da igreja não
se resumia a obras de pintura ou escultura, mas que também a própria
arquitetura - através das suas cores, materiais, texturas, jogos de luz e
sombra -, era arte em si mesma, ou seja, paredes, pilares e vigas eram outros
tantos componentes artísticos da igreja. Surgiu assim uma família de igrejas
cujas características foram bem descritas pelo jornal
Novidades, que no momento da
inauguração da igreja do Sagrado Coração de
Jesus, em Lisboa, obra mais emblemática do Movimento, acabou por revelar como a
proposta do MRAR havia vingado, ao afirmar: “a preocupação dos artistas que conceberam a
nova igreja do S. Coração de Jesus foi precisamente a de fazerem um templo
segundo as indicações do Concílio Ecuménico. E ninguém dirá que não o
conseguiram. Tudo ali é amplo e funcional. Milhares de toneladas de cimento
armado tomaram forma, erguendo-se em paredes e colunas a que não faltam
majestade e sobriedade. Paira no grandioso recinto o espírito de «pobreza
evangélica», que melhor afirma a dignidade da sua função. É um templo da hora,
em que as almas se sentirão livres de tudo o que poderia distraí-las do centro
[e] o centro é o altar”.
Um programa artístico e pastoral
Alzina Menezes e Erich Corsepius,
Igreja de São Jorge de Arroios (1972), Lisboa
Num tempo
politicamente conturbado e de forte secularização, o MRAR conseguiu afirmar em
Portugal um programa artístico e pastoral que se constituiu como o melhor
exemplo de intervenção religiosa e cultural de uma elite que operou uma efetiva
renovação dos edifícios religiosos, bem como uma valorização das dimensões
sociológica e antropológica dos espaços litúrgicos. Essa fora a missão com que
foi criado por um pequeno grupo de arquitetos
mobilizado para a luta por um tema determinado e localizado no tempo. (...)
Apesar da proposta arquitetónica do MRAR não ter perdurado no
tempo, o seu modo de proceder – caracterizado pela promoção do debate, da
formação, da crítica de projetos e da troca de informação entre pares –
mantem-se ainda hoje um modelo possível para os agentes
responsáveis pela criação e gestão da arte e arquitetura religiosa. O
MRAR soube reunir, formar e sensibilizar arquitetos, artistas, padres e
seminaristas para a dimensão estética das obras da Igreja. Esta caminhada de
estudo, discussão e formação comum que o MRAR experimentou revelou-se como
factor de qualificação da arquitetura religiosa e permanece, por isso, uma
lição importante para os nossos dias, tal como a humildade e sentido de serviço
que sempre revelaram. Como na resposta a uma carta que o Movimento recebeu em
1964 com várias referências em tom de ameaça ao prestígio do MRAR, “movimento novo entre nós [que] tem grandes
opositores de categoria”, que levou
Diogo L. Pimentel a clarificar o sentido e propósito do Movimento – “A acção do MRAR é de esclarecimento, de
apoio, de doutrinação, de incentivo, de formação, de divulgação, etc., mas
nunca de realização de obras. (…) Esclareço: o MRAR é um movimento de católicos
empenhados em servir a Igreja num campo específico – o da Arte Sacra. Deste
modo, (…) o MRAR não faz projectos, nem se preocupa muito com o seu prestígio.
(…) O MRAR preocupa-se com a Igreja e não consigo próprio”. Assim nasceu em
1953 e assim terminou em 1969.
(da Introdução)
“O inconveniente dos homens não conhecerem o passado é que
também não conhecem o presente.” G. K. Chesterton (1933)
O trabalho que agora se apresenta tem como
tema O MRAR e os anos de ouro da Arquitetura Religiosa
em Portugal no século XX – A ação do Movimento de Renovação da Arte Religiosa
nas décadas de 1950 e 1960. O interesse por este Movimento teve o seu início
durante os anos em que o autor trabalhou diretamente com o arquiteto João de
Almeida – 2001 a 2008 –, que sabendo do interesse pessoal na temática da
arquitetura religiosa foi partilhando ao longo dos anos pequenas histórias de
viagens pela Europa Central e de um grupo de amigos e colegas que nas décadas
de 1950 e 60 lutaram em Portugal pela arte moderna nas igrejas.
O fascínio pelos relatos escutados começou por levar a uma procura
bibliográfica sobre o tema que rapidamente se confrontou com a escassez de
escritos (…). Com o passar do
tempo, concluiu-se que a informação conhecida do Movimento (…) não só era
bastante reduzida comparativamente à ação e alcance do MRAR que se ia escutando
nos relatos de João de Almeida, como não era de modo algum suficiente
para conhecer a fundo e entender o percurso e a importância do Movimento.
Neste contexto, motivado por alguns arquitetos e teólogos, bem como pela
vontade de (dar a) conhecer este pedaço da nossa história ainda recente – que
ainda era possível recuperar com testemunhos na primeira pessoa de alguns
membros do MRAR –, decidiu o autor contribuir para a investigação sobre o
Movimento propondo a hipótese de que ao tempo da sua existência corresponderam
os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX, primeiro de
tudo pelo modo de abordar o tema, baseado num profundo e sistemático estudo,
debate, reflexão e partilha realizados entre diferentes grupos profissionais
juntamente com padres e seminaristas, mas também por ter dado origem a uma
“família” de obras construídas com uma qualidade e erudição que depois teve
equivalente apenas em algumas obras isoladas, mas não noutros conjuntos no tempo
ou no espaço. (…)
Perante a escassez de material bibliográfico disponível, o
trabalho seguiu uma metodologia que deu prioridade ao contato direto com os
membros vivos do MRAR e à recolha dos testemunhos de arquitetos e
demais participantes do Movimento, o que permitiu não só enriquecer as bases
transmitidas por João de Almeida, mas levou também à descoberta de material
inédito na posse dos mesmos, bem como à reunião de pistas e locais novos para a
investigação que levaram ao levantamento de muita informação direta ou
indiretamente relacionada com o MRAR. (…)
Conhecida a atividade, organização e intenções do Movimento,
considerou-se fundamental confrontá-las com a realidade construída de modo a
avaliar da sua relevância concreta na arquitetura religiosa. Realizou-se então
um levantamento das igrejas contemporâneas do MRAR que incluiu visitas de
estudo a todas as obras diretamente relacionadas com o Movimento, bem como à
recolha de informações mais detalhadas existentes em artigos e textos diversos,
mas principalmente nas Memórias Descritivas e Justificativas, que muito
ajudaram a explicitar a argumentação do MRAR e o seu modo de pensar uma igreja,
mas também a evolução por este efectuada ao longo de tempo e que ficou
claramente registada nas palavras e expressões utilizadas. De igual modo, também o levantamento dos livros e revistas que os membros do MRAR
consultaram na época permitiu chegar às suas fontes de informação e entender
melhor as bases do seu pensamento.
Entre as obras visitadas incluem-se as igrejas de
N. Sra de Fátima, Águas, Penamacor; Santo António, Moscavide; N. Sra de Fátima,
Figueira, Vila do Bispo; São Simão, Barco, Fundão; N. Sra da Piedade, Vidais;
São Mamede, Negrelos, Santo Tirso; Seminário Dominicano do Olival, Aldeia Nova,
Ourém; N. Sra de Fátima, Póvoa do Valado, Aveiro; N. Sra do Rosário, Fátima; S.
Coração de Jesus, Lisboa; S. Jorge de Arroios, Lisboa; Santiago, Almada;
Sagrada Família, Paço de Arcos; N. Sra. da Conceição, Queluz; S. Coração de
Jesus, Porto; Sagrada Família, Albarraque; São Lázaro, Braga; Santa Joana
Princesa, Aveiro; Convento das Franciscanas de Calais, Gondomar; Santo Isidro,
Pegões; N. Sra de Fátima, Póvoa de Santa Iria; N. Sra dos Remédios, Bairro da
Sacor; Bobadela; N. Sra da Conceição, Rio Maior.
Uma viagem de estudo
Importa também referir a importante viagem de estudo
efetuada a França e Suíça, que permitiu reproduzir parcialmente os passos dados
por João de Almeida entre 1949 e 1952. O objetivo da viagem foi o de conhecer as
principais obras que mais diretamente influenciaram os arquitetos do MRAR e que
se encontravam dentro do material trazido daqueles países por João de Almeida,
material esse que veio a informar e entusiasmar o jovem grupo, levando-o à
realização da “Exposição de Arquitectura Religiosa Contemporânea” em 1953 e
consequentemente à formação do MRAR. Esta viagem centrou-se na visita às principais obras devidas aos
dominicanos Couturier e Régamey, diretores da revista L’Art Sacré que orientaram João de Almeida durante um ano em Paris
– igrejas de Assy e de Audincourt, capela de Ronchamp e convento de La Tourette
–, e as várias obras dos suíços Fritz Metzger, Ernst Gisel, Karl Moser e
Hermann Baur, com particular ênfase para as igrejas deste último por ter sido
no seu atelier que estagiou João de Almeida no começo dos anos de 1950.
Em ordem à elaboração de uma apresentação do trabalho
realizado com o objetivo de tornar compreensível a existência e o percurso
histórico de um movimento como o MRAR, que foi causa e consequência de fatores
diversos e perante o olhar histórico que caracteriza esta investigação,
considerou-se que a abordagem no estilo narrativo seria a mais adequada para
apresentar com fidelidade o Movimento. Os acontecimentos estão deste modo apresentados
e articulados segundo uma ordem cronológica, recorrendo-se frequentemente à
citação de comentários, pensamentos e ideias expressas então, como forma de
garantir a riqueza do discurso original e de lhe garantir uma genuidade que
poderia ser falseada no recurso a palavras nossas.
(...) O Capítulo 1 ocupa-se da primeira metade do século XX (1900-1950)
e procura apresentar os antecedentes que levaram ao aparecimento do MRAR. Para
isso começa por resumir a evolução política, religiosa e social portuguesa,
destacando-se o aparecimento da Acção Católica Portuguesa e o desenvolvimento
do movimento litúrgico pelo papel que tiveram na criação e no pensamento do
MRAR. Seguidamente é abordado no campo da Arquitetura, o Modernismo e o
Português Suave que o sucedeu (...).
Assim como o MRAR
surgiu no seguimento e como resultado de diferentes acontecimentos que o
antecederam, de igual modo, uma vez fundado, foi bastante influenciado pelo
contexto em que se situou. Isso mesmo retrata o Capítulo 2 que procura ajudar a
melhor entender o percurso do MRAR, começando pelos importantes
desenvolvimentos políticos, religiosos e sociais vividos em Portugal nas
décadas de 1950 e 60, que marcaram sobremaneira o percurso do Movimento, nada
alheio ao ambiente em que estava inserido. (...)
[O Capítulo 3 –
“MRAR: história”] compreende o relato exaustivo da vida do Movimento desde os
anos imediatamente anteriores à sua fundação até ao seu ocaso. (...)
O quarto e último capítulo aborda a relação do MRAR com a arquitetura
religiosa, recorrendo aos edifícios que naquele tempo foram projetados pelos
membros do Movimento, porque foi nestes projetos - aqui divididos em igrejas
rurais, urbanas, remodelações ou igrejas não construídas – que se testou e
materializou o pensamento arquitetónico e litúrgico do MRAR. (…)
1 comentário:
Boa tarde,
Venho por este meio convidar e solicitar a divulgação do Lançamento do livro "O MRAR e os anos de ouro da Arquitetura Religiosa em Portugal no século XX" que teve origem nesta tese, de João Alves da Cunha.
Apresentação da obra por João de Almeida, Diogo Pimentel e José Manuel Fernandes.
Terá lugar na Capela do Rato, dia 10 de Novembro pelas 18h30.
Toda a informação neste link: https://www.facebook.com/events/856550337773641/
Com os melhores cumprimentos,
Coordenação de Marketing da Universidade Católica Editora
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