sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Deus ainda tem futuro?

Livro e debates

Três debates assinalam, na próxima semana, no Porto, Coimbra e Lisboa, a publicação do livro Deus Ainda Tem Futuro? (ed. Gradiva). Coordenado por Anselmo Borges, o livro resulta do colóquio internacional Igreja em Diálogo 2013, realizado em Valadares (Gaia), em Outubro de 2013. O livro inclui ainda textos de Javier Monserrat e José Ignacio Gonzalez Faus, que não participaram no colóquio. O prefácio é de Eduardo Lourenço.
Os debates decorrem dias 2, 3 e 4 de Dezembro (terça, quarta e quinta da próxima semana). Nos dois primeiros, o tema é Deus na era da ciência e participam Anselmo Borges, Carlos Fiolhais (professor do Departamento de Física da Universidade de Coimbra) e Javier Monserrat (Universidade Autónoma de Madrid). No Porto, dia 2, o debate decorre na Fundação Cupertino de Miranda (Av. Boavista, 4245), a partir das 21h30. Em Coimbra, dia 3, será às 18h30, na Sala de São Pedro da Biblioteca Geral Universidade.
No dia 4, em Lisboa, na sede do Centro Nacional de Cultura (R. António Maria Cardoso, 68, ao Chiado), a partir das 18h30, o tema é Futuro sem Deus? Aqui, intervêm Anselmo Borges, Guilherme d’Oliveira Martins, presidente do CNC, Javier Monserrat e Miguel Oliveira da Silva, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.


O livro aborda temas como o problema de Deus e do sentido último da existência; a situação religiosa do mundo contemporâneo; as representações e experiências de Deus no Ocidente e no Oriente; o rosto feminino de Deus; a autonomia da ética; a ciência e a razão; a genética, o animalismo, as neurociências, o trans-humanismo; a natureza e a criação.
Entre os autores estão nomes consagrados da teologia contemporânea como Paul Valadier, Juan Masiá, Andrés Torres Queiruga, González Faus e José Arregui, além de Isabel Gómez-Acebo, uma das autoras importantes da teologia no feminino. De outras áreas do saber vêm nomes como Jean-Paul Willaime, Carlos Fiolhais, Miguel Castelo-Branco, Leandro Sequeiros, Diego Gracia e Javier Monserrat, que cruza a filosofia, a neurologia e a teologia.
No prefácio, com o título Suicidário Ocidente, Eduardo Lourenço escreve: “Questão atrevida e que na verdade soa a blasfémia (ou soaria, se a formulássemos em terras do islão) esta, que sabemos grave como nenhuma outra para ocidentais em vésperas de descerem a noivas catacumbas: Deus ainda tem futuro? Quando aquela, menos vertiginosa mas não menos apocalíptica, seria: o Homem, a Humanidade, ainda tem futuro?”

Na introdução, Anselmo Borges como que ensaia uma resposta, citando Karl Rahner: “A morte absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morrera.”

Integração da pluralidade

Para debater este futuro de Deus – e da humanidade – o livro percorre a realidade contemporânea, a partir de várias áreas do saber. Jean-Paul Willaime, sociólogo da Sorbonne (Paris), diz que, hoje, Deus viaja, é um migrante. E dá um exemplo: “em 1910 dois terços dos cristãos viviam na Europa, hoje apenas aí vive um quarto. O cristianismo é cada vez mais uma religião africana, asiática... aos mesmo tempo que o islão se torna cada vez mais uma religião europeia.”
Perguntando se estamos a caminhar rumo a uma sociedade pós-secular, Willaime caracteriza a realidade contemporânea como a tradução de diferentes formas de ser religioso: há uma “integração da pluralidade das religiões e visões do mundo na própria consciência dos nossos contemporâneos” e a religião surge como factor identitário e recurso ético. As afirmações religiosas tornam-se subculturas em sociedades que já não são atestadoras das religiões, diz o sociólogo. Mas, conclui, “Deus ainda não disse a sua última palavra”.
Carlos Fiolhais faz um percurso pela relação entre ciência e divino, através das ideias e do trabalho de vários cientistas. O professor de física recorda o caso Galileu, que dizia não se sentir obrigado a acreditar “que o mesmo Deus que nos dotou com os sentidos, razão e intelecto, pretenda que renunciamos à sua utilização para nos dar por outros meios conhecimentos” que podemos obter por eles. E inclui no percurso o físico e padre Georges Lemaitre, que desenvolveu a teoria do Big Bang, Newton, Max Planck ou Niels Bohr, Prémio Nobel da Física em 1922 (um ano depois de Einstein).
O neurocientista Miguel Castelo-Branco situa depois as relações entre neurociências e espiritualidade. Do ponto de vista biológico, os seres humanos são profundamente espirituais, o que quer dizer que ciência e espiritualidade são ambas necessárias, defende. Por isso é importante um novo paradigma que olhe para o ser humano de forma holística, em que mente e corpo se completam.
O médico, filósofo e bioeticista espanhol Diego Gracia fala da secularização da ética. A ética tem a ver com a experiência da justiça, a religião com a experiência do dom, propõe. São experiências distintas e, de algum modo opostas: se tudo fosse regulável pela justiça, não haveria espaço para o dom; se tudo fosse dom, não haveria espaço para a justiça.
“A religiosidade é uma experiência transcendental que permeia e radicaliza a ética, sem com isso alterar a sua especificidade e autonomia.. Não leva à anulação da moralidade, mas a torná-la mais exigente, abrindo o espaço do que Paul Ricoeur chamou ‘supra-ética’. Basta pensar nas bem-aventuranças ou na exortaçãoo a dar a outra face em caso de ofensa ou no perdão aos inimigos, para compreender que estas não são exigências que possam ser justificadas a partir da ética pura...”
Diego Gracia aponta ainda a secularização como tentativa de purificar a experiência religiosa e de dotar a sociedade moderna de autonomia em relação ao poder religioso – o que é benéfico para a própria experiência religiosa.
Paul Valadier, teólogo jesuíta, pergunta se há uma excepção humana, uma diferença em relação ao cosmos e às espécies animais. O lugar único da espécie humana existe, no cristianismo, desde a narrativa bíblica do Génesis. O Shabath (sábado) “abre um espaço que está para além do trabalho quotidiano”, colocando a humanidade numa situação de responsabilidade para consigo mesma e a natureza. A excepcionalidade humana está “na possibilidade de trair o que é a nossa identidade mais alta: querermo-nos seres de razão, por conseguinte, para o crente, querermo-nos filhos e filhas de Deus”, afirma.

A mística será resistência

Leandro Sequeiros, paleontólogo da Universidade Comillas (Madrid), fala das relações entre fé e ateísmos, bem como de correntes como o criacionismo e o desígnio inteligente. Para concluir que o Deus cristão não é o Deus de muitos ateus. “O ser humano tenta aceder às grandes respostas sobre Deus e a criação a partir de perspectivas muito diferentes.”


Sobre essas diversas experiências fala Juan Masiá, teólogo e filósofo jesuíta espanhol, que trabalhou durante décadas no Japão. Com o título O Deus do oriente e o Deus do Ocidente: a transformação inter-religiosa da fé, e referindo-se ao encontro de religiões, mais do que às dinâmicas de diálogo inter-religioso, Masiá caracteriza o Oriente como o interior e o Ocidente como exterior, sendo necessário que ambos se conheçam mutuamente. “O nome futuro da religião e da espiritualidade será a profundidade humana, a tomada de consciência e o contacto com a dimensão de profundidade da vida.”
Também o biblista José Ignacio González Faus, um dos mais importantes teólogos espanhóis da actualidade, que não esteve em Valadares no ano passado, trata a Unicidade de Deus, pluralidade de místicas. Exprimindo reservas quanto à expressão diálogo das religiões, o professor da Faculdade de Teologia da Catalunha faz um percurso por aquilo que caracteriza como as místicas do ser – hinduísmo, budismo e taoísmo – e pelas místicas da fé: judaísmo, cristianismo e islão. E termina avisando contra os problemas da violência religiosa. “A beleza não salvará o mundo”, escreve, “mas é um anúncio de que o mundo tem salvação e o homem deve procurá-la. A sua mensagem de gratuidade torna-se assim apelo que requer uma resposta, como acontece sempre com o amor gratuito. Por isso, também aqui, a mística será resistência.”
Torres Queiruga, um dos nomes de topo da teologia contemporânea, aborda A teologia, a partir de “o Deus que cria por amor”. E resume: “a urgência mais actual da teologia consiste em conseguir que a experiência radical da fé se torne compreensível, credível, habitável e vivível para as mulheres e os homens de hoje. Este, é claro, foi sempre o papel da teologia. Mas, no nosso tempo, após a ruptura da Modernidade e a resposta lenta, relutante e em conflito da teologia, ganhou urgência muito especial.” Cada cristão, acrescenta o teólogo galego, tem de chegar a dizer: “Creio porque vejo racionalmente que é assim e tenho fé.”
Javier Monserrat, que estará nos debates da próxima semana mas também não participou no colóquio do ano passado, escreve sobre A experiência moderna do silêncio de Deus: uma mudança hermenêutica necessária para o cristianismo. Uma das consequências dessa mudança, defende, deve levar a uma alternativa hermenêutica que leve a “proclamar o kerigma cristão no nosso tempo com a qualidade exigida”.
José Arregui, da Universidade de Deusto (Bilbau, Espanha), trata O Deus de Jesus, mais além, para lá da sua imagem de Deus. Partindo das diferentes imagens do Jesus histórico, afirma que só se pode crer inteiramente no Deus de Jesus, se se entender o mistério de ternura e libertação, para lá das palavras e imagens concretas do próprio Jesus. Este pensava em Deus como rei e juiz, como alguém omnipotente e eterno. “Mas Jesus – como todo o crente e, além disso, como profeta –transcendeu, na sua fé e na sua vida, as suas representações de Deus.” Jesus foi provocador, inovador e infractor e não lhe importavam os códigos morais da época, ta como não lhe importava o pecado, mas o sofrimento. O perdão surge na medida em que cura, mas o que importava a Jesus era a cura, insiste Arregui.

Isabel Gómez-Acebo fala, a propósito d’O rosto feminino de Deus, da maternidade biológica de Deus: Ele leva no seu ventre todos os seres humanos, ou mesmo toda a natureza, como tantas vezes se refere no Antigo Testamento. “Não creio que seja uma casualidade que a palavra ‘misericordioso’, a mais utilizada na Bíblia para falar de Deus, é rahamim, ventre materno no seu significado hebraico, que se faz sinónima de compaixão e misericórdia.” Essa maternidade biológica, acrescenta Gómez-Acebo, traduz-se ainda em expressões como dores de parto, na entrega de João à mãe de Jesus, na metáfora do leite que amamenta ou no descanso eterno nos braços da mãe, quando se fala do final da vida.

Textos anteriores no blogue: 
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