sábado, 24 de novembro de 2018

Santos, Vaticano II e opção preferencial pelos pobres


Texto de Leonor Xavier


Pessoas sem-abrigo na igreja dos Mensageiros da Paz, em Madrid:  
Penso em todos os mortos e martirizados, nos retirantes e deslocados, nos excluídos da aparente segurança do mundo ocidental. E releio o poema de Drummond...


Em memória de momentos vividos por muitos, penso que é justo revisitar a própria memória. Ou seja, em vez de remendá-la, transformá-la em testemunho.
Retomo este meu texto de Novembro de 2012, a repensar fragmentos do percurso do Movimento Nós Somos Igreja entre nós. E assim confesso, uma vez mais, a saudade de Ana Vicente e a sua falta sentida, neste tempo que nos é dado viver. 

Santos, Vaticano II e opção preferencial pelos pobres

Dia de Todos os Santos, Dia das Bem Aventuranças, Dia do Sermão da Montanha, este ano faz-me uma vez mais pensar nas mais anónimas criaturas que todos os dias alcançam a santidade, na vivência das suas diferentes condições e circunstâncias. Faz-me pensar nos que sofrem, aqueles que Carlos Drummond de Andrade enumerava no poema “Canto ao Homem do Povo de Charlie Chaplin:”
falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração, os párias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os recalcados.”
E faz-me reviver momentos do Encontro anual do Internacional Mouvement We Are Church, IMWAC, agora acontecido em Lisboa. Treze nacionalidades, quase trinta membros do IMWAC foram recebidos pelo Movimento Nós Somos Igreja – Portugal, organizador do Encontro. A língua falada foi o inglês, as línguas pensadas foram variadas, na identidade cultural de cada presença. Estes católicos, na sua universalidade, têm em comum, no IMWAC, a reforma desejada da Igreja. Reforma da Igreja-Instituição que, tal como muito bem sublinhou Ana Vicente, não é a Igreja do Povo de Deus.
Para ampliar esta causa aos grupos católicos nos mais remotos países, à Europa de Leste, aos continentes Ásia e Austrália, debateram-se meios de divulgar a Petição do Povo de Deus. Foram faladas as relações com a hierarquia, ou o diálogo diplomaticamente possível com alguns bispos na Dinamarca e praticamente impossível em países como Itália ou Espanha. A urgência de mudança de mentalidades foi invocada, para que aconteçam as mudanças desejadas.
O representante da Irlanda falou nas reações à pedofilia na Igreja. Um dos representantes dos Estados Unidos lembrou a tensão entre o ideal e a realidade, na questão social. Lançada pelos dois representantes do Brasil no IMWAC, a questão da “opção preferencial pelos pobres” que foi substância fundamental na Teologia da Libertação na América Latina dos anos 60, mereceu destaque no envolvimento de todos os participantes, unânimes na defesa da justiça social. 

Em documento que será a curto prazo redigido, o desejo de uma Nova Igreja chegará a Roma. A prepará-lo, Ana Vicente propõe uma consulta atenta, com investigação sobre o Papa Leão XIII, as Encíclicas, os textos de Doutrina Social da Igreja. E propõe que aos ingredientes da Teologia da Libertação se atribuam novas designações, para atenuar a carga ideológica marxista, em voga na fase de Puebla e Medelin, estendida a toda a América Latina, irradiando para o resto do mundo. Um outro documento, a registar a voz do IMWAC em Roma quando ocorrer o Conclave depois de Bento XVI, será também redigido, traçando o perfil do próximo Papa, por nós, Povo de Deus, desejado.    
Na Igreja, as portas estiveram fechadas até ao dia de Outubro de 1962 em que o Papa João XXIII concebeu o Concílio Vaticano II, alertando o mundo para os Sinais dos Tempos e o Aggiornamento indispensável ao trânsito da Igreja de Roma no mundo. Para entender as transformações acontecidas, é preciso considerar o contexto da época, diferente da condição atual. Concisa, firme, clara, a intervenção da teóloga Teresa Toldy envolveu o Encontro inteiro no pensamento sobre Aggiornamento e Obediência, sobre liberdade e consciência, sobre este tempo de crise em que a Igreja deve estar ao lado daqueles que não têm poder. Teresa acredita no espírito do Concílio, afirma que a Igreja está nos espaços abertos, defende que passemos às novas gerações o testemunho da experiência que vivemos. Ela cita os preceitos da Congregação da Doutrina da Fé para os bons católicos, a ilustrar aquilo que permanece e parece fundamental, na Cúria Romana, na instituição Igreja: “Vá à missa. Vá à confissão. Cumpra devoção aos santos. Leia os documentos da Igreja. Estude o catecismo. Ajude alguém. Convide alguém para a missa. Viva as beatitudes.”
Releio a notícia sobre a recomendação de Bento XVI aos padres, em 2009, para que voltem a usar batina, demonstrando hábitos, cultura e caridade, missão central da Igreja. E, relembrando os Santos, rezo pelos mais de 500 católicos caldeus assassinados no norte do Iraque, em setembro de 2010. Segundo a ONG norte americana Christian Peace Association, restam hoje 400 mil do 1,5 milhão de cristãos que viviam no Iraque em 2003. Católicos caldeus, assírios, ortodoxos arménios. Penso em todos os mortos e martirizados, nos retirantes e deslocados, nos excluídos da aparente segurança do mundo ocidental. E releio o poema de Drummond.

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