terça-feira, 27 de novembro de 2018

Uma cimeira “sem precedentes” para uma resposta “firme e universal”

Texto de António Marujo


Picasso, Guernica (pormenor)

O Papa Francisco nomeou, no final da última semana, os membros da comissão responsável por organizar a cimeira inédita de presidentes de conferências episcopais de todo o mundo, para discutir o tema dos abusos sexuais na Igreja Católica. A iniciativa decorre entre 21 e 24 de Fevereiro, em Roma e o seu carácter “sem precedentes” traduz o facto de o tema ser considerado uma “prioridade” do Papa, tendo em conta também o “impacto devastador” nas vítimas, como disse o porta-voz do Vaticano, Greg Burke. 
A comissão nomeada pelo Papa inclui os cardeais Blase J. Cupich, de Chicago (EUA) e Oswald Gracias, de Bombaim (Índia); Charles Scicluna, arcebispo de Malta e secretário-adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé; Hans Zollner, padre jesuíta e presidente do Centro para a Proteção de Menores da Universidade Pontifícia Gregoriana. A preparação envolverá também, de acordo com o responsável já citado, Gabriella Gambino e  Linda Ghisoni, do dicastério do Vaticano para os Leigos, Família e Vida, os membros da Comissão Pontifícia para a Protecção dos Menores (CPPM) e “algumas vítimas de abusos”.
A constituição da comissão demonstra claramente o empenho do Papa em erradicar este problema, tanto quanto possível, da vida da Igreja. Cupich e Gracias são, entre os cardeais, dois dos que estão do lado do Papa neste assunto. Scicluna e Zoller são dois dos mais activos na hora de investigar o que se passa, propor soluções e escutar vítimas. Scicluna, recorde-se, foi um dos dois responsáveis por preparar ao Papa o devastador relatório sobre a situação vivida no Chile, que conduziu à cimeira dos bispos com o Papa, ao pedido de demissão dos bispos em bloco e à efectivação desse pedido já por parte de vários bispos. 
Numa entrevista à revista America, dos jesuítas dos EUA, o arcebispo Scicluna, que foi nomeado também há poucos dias secretário-adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé, dizia que o Papa convocou a cimeira porque entende que o problema “tem de ser prioridade nas pautas da Igreja”. E porque se trata de “uma questão global: não é uma questão de critérios geográficos ou culturais, mas um problema global que a Igreja deve abordar em união, respeitando as diferentes culturas, mas com uma solução definitiva em conjunto, com pessoas em sintonia”.
O encontro marcará “o início de uma nova abordagem” que deverá abranger toda a Igreja, “mas também terá um contexto local muito importante, porque a protecção não é distante, não pode ser algo abstracto, tem que ser vivida em cada paróquia, em cada escola, em cada diocese”. E entre os objectivos do encontro estão seguramente os de fazer com que os bispos percebam e discutam juntos o fenómeno “criminoso” dos abusos como sintoma muito grave de algo mais profundo, que é uma crise no modo de abordar o ministério”, que tem sido designada por “clericalismo” ou “perversão do ministério”. 
Na entrevista (da qual pode ser lido aqui um resumo alargadoem português do Brasil), Charles Scicluna acrescenta que, tal como o Papa tem reafirmado, “a questão não diz respeito apenas aos casos trágicos individuais de má conduta e o impacto do crime nos mais vulneráveis, as crianças, mas também ao modo como se administra a questão quando somos confrontados, ou seja, como tratamos os criminosos, as vítimas, a comunidade”. 

O mesmo responsável insiste ainda, na entrevista, nas ideias da responsabilização, da tentação de encobrir estes crimes em nome da defesa da instituição, na necessidade de combater esta doença, da importância de os bispos “perceberem a gravidade da situação” e da abordagem sinodal (de reflexão de todos os envolvidos) neste processo. E informa que o Papa pretende realizar uma “liturgia penitencial” no decorrer do encontro. “As vítimas também farão parte da liturgia, assim como serão consultadas antes e ouvidas durante a reunião”, acrescenta. 

“Um claro passo em frente”

Um outro dos membros da nova comissão, o jesuíta Hans Zollner, afirma, em entrevista à Vatican News, que a pedofilia é um “escândalo” e que o Papa pretende, com a cimeira de Fevereiro, uma “resposta firme e universal” contra os abusos. “Tanto os abusos como a sua cobertura já não podem ser tolerados”, diz o também membro da CPPM. Destacando também a importância da dimensão sinodal que a realização da cimeira traduz, Zoller adianta que a comissão agora criada irá preparar documentação básica para todos os participantes e que estará em estreita colaboração com a CPPM. 
Os debates já feitos por várias conferências episcopais – mas não ainda pelo episcopado português –, são vistos pelo padre Zoller como necessários e passo fundamental para o encontro de Fevereiro, em Roma. “A fase de consulta começa agora e servirá precisamente para reunir e harmonizar as experiências das conferencias episcopais da melhor maneira possível”, afirma, na entrevista que pode ser lida aqui na íntegra, em espanhol. 
Motivo de questionamento foi o facto de o cardeal Sean O’Malley não ter sido nomeado para a comissão. O arcebispo de Boston (EUA), um dos principais rostos na luta contra os abusos e presidente da Comissão Pontifícia para a Protecção dos Menores, considerou, em declarações ao Vatican Insider, que a cimeira de Fevereiro será “um momento importante para dar um claro passo em frente para as dioceses de todo o mundo”. A CPPM recomendara ao Papa uma iniciativa deste género e foi no conselho de cardeais (C-9) que assessora Francisco, e no qual O’Malley também tem assento, que a ideia da cimeira foi decidida

Um cardeal “ausente” e os apelos das freiras 

No Crux, questionou-se, no entanto, o facto de O’Malley não estar na comissão agora criada. A CPPM, tutelada pelo arcebispo de Boston, estará, no entanto, envolvida na preparação da cimeira, em estreita colaboração com a comissão organizadora. Além disso, os dois principais responsáveis da organização são muito próximos de O’Malley. Num texto do Crux, John Allen Jr. Recorda que o cardeal O’Malley se distanciou do Papa em alguns pormenores da gestão desta crise – foi o caso do modo como, na viagem ao Chile, Francisco recusou, num primeiro momento, condenar o padre Fernando Karadima, acusado de ter abusado de muitas pessoas, por alegadas faltas de provas. Mas o cardeal dos EUA também foi salpicado pelas revelações de que o padre Boniface Ramsey lhe tinha enviado uma carta acusando o então cardeal McCarrick, e que O’Malley não leu – admitindo depois que o deveria ter feito. 
Outra explicação, a haver alguma razão plausível, seria o facto de o Papa preferir um caminho de corresponsabilização do conjunto dos bispos, em lugar de estratégias mais individualizadas como as protagonizadas por O’Malley ou pelo arcebispo irlandês Diarmuid Martin. Apesar de ser deixado formalmente de fora da organização, O’Malley estará muito envolvido, através da CPPM, que preside, e através da sua estratégia de responsabilização não só dos crimes de abusos, mas também da cobertura dada por muitos bispos. E, como conclui a análise (que pode ser lido aqui em português do Brasil), este será mais um elemento a colocar bem alta a fasquia para a cimeira de Fevereiro. 
Sábado passado, 24 de Novembro, um dia depois de anunciada a nova comissão, chegou ainda de Roma outra notícia: a União Internacional de Superioras Gerais (UISG) – que reúne as responsáveis máximas de mais de 500 mil religiosas católicas de todo o mundo e estará também representada na cimeira – defendeu a possibilidade de denúncias civis e penais, seja dentro das congregações, a nível paroquial ou diocesano “ou em qualquer espaço público”. 
Ao mesmo tempo, a UISG denuncia a “cultura de silêncio e segredo” que persiste em muitos âmbitos, no que respeita aos abusos sexuais – e apela mesmo às religiosas que se viram vítimas dessa situação a denunciá-las à polícia e às suas superioras. “Condenamos os que apoiam a cultura do silêncio e o segredo, frequentemente com o pretexto de ‘proteger’ a reputação de uma instituição ou considerando-a ‘parte da sua cultura”, diz um comunicado divulgado pela UISG, na véspera do Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres (aqui na íntegra, em castelhano).

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