Texto de Eduardo Jorge Madureira
O Armistício declarando o fim da I Guerra Mundial que, desde 1914, opunha tropas alemãs e aliadas, foi assinado fez cem anos neste domingo, 11 de Novembro. As celebrações oficiais da efeméride, que têm decorrido em França, onde se encontram dezenas de chefes de Estado e de governo, têm sido acompanhadas por múltiplas outras evocações de um conflito de uma violência e uma crueldade até então nunca vistas. Como é habitual nos aniversários de acontecimentos relevantes, têm abundado os colóquios, os seminários, as exposições, as edições de livros e de números especiais de revistas e de jornais.
A revisitação de um período negro do século XX não tem provocado polémicas excessivas. Mas elas não têm faltado. Uma diz respeito ao lugar a conceder, por estes dias, à memória do marechal Philippe Pétain, o Dr. Jekyll que se transformou em Mr. Hyde, para usar a imagem que o historiador Serge Klarsfeld traçou no diário francês Le Monde (8 de Novembro). Tendo sido um dos chefes militares que conduziram o exército francês à vitória em 1918, Pétain seria, poucas décadas depois, o rosto do colaboracionismo com o ocupante nazi da França na II Guerra Mundial. “A nossa memória colectiva assume o veredicto de 1945”, sintetizou, no mesmo jornal, Laurent Joly, também historiador.
O “consenso negativo” em relação ao marechal ocorre numa ocasião em que os jornais têm dado conta de um acréscimo de violência contra os judeus em França, tendo o número de acções antissemitas em França subido quase 70 por cento nos primeiros nove meses deste ano. A denúncia foi feita pelo primeiro-ministro Edouard Philippe, num texto de homenagem às vítimas da “Noite de Cristal”, os judeus que, a 9 de novembro de 1938, na Alemanha, viram as suas sinagogas, lojas e casas destruídas por uma onda de violência nazi.
“É melhor festejar a concórdia do que a vitória”
“É melhor festejar a concórdia do que a vitória”
Não é, pois, por acaso que algumas vozes – como a do director do Libération, Laurent Joffrin – têm pedido que este dia 11 de Novembro de 2018 celebre a paz e a concórdia entre os povos da Europa – que, feito inédito, duram desde há mais de 70 anos – em vez de homenagear a vitória dos aliados. No editorial “1918, Uma paz com memória curta”, Laurent Joffrin escreve que foi o nacionalismo das nações europeias, que hoje há quem pretenda restaurar, o causador da morte de 18 milhões de seres humanos; e que foram os valores viris, cuja ausência hoje se deplora, que conduziram a uma brutalidade inédita, com a utilização de canhões de enorme calibre e de metralhadoras, de gás de combate, com a destruição de incontáveis edifícios civis, e a um genocídio contra os arménios, promovido por jovens turcos.
“Hoje, perante a emergência dos nacionalismos, é melhor festejar a concórdia do que a vitória”. O propósito formulado por Laurent Joffrin cumpre-se com a realização do Fórum de Paris pela Paz, um novo evento anual, inaugurado no domingo, que pretende afirmar que “a cooperação internacional é essencial para enfrentar os desafios globais e garantir a paz duradoura”. Para apoiar a acção colectiva, quer mobilizar todos os actores da governança global – estados, organizações internacionais, governos locais, ONG e fundações, empresas, jornalistas, sindicatos, grupos religiosos e cidadãos.
“Cem anos após o fim da Primeira Guerra Mundial, o Fórum de Paris pela Paz recorda que há uma urgência em agir, o que requer acção concreta, liberdade de tom e diálogo aberto entre todos os actores”, dizem os organizadores, uma associação independente criada em 2018 pela Fundação Körber, pela Fundação Mo Ibrahim, pelo Instituto Francês de Relação Internacionais, pelo Instituto Montaigne, pelas Sciences Po e pelo Ministério da Europa e dos Negócios Estrangeiros, dinamizada pelo Presidente da República francês, Emmanuel Macron.
A iniciativa tem uma componente mais institucional, que se traduz na presença de mais de meia centena de chefes de Estado e de governo, mas inclui um aspecto prático: num “espaço de soluções”, concebido como “uma aldeia mundial da acção”, os promotores de 120 iniciativas concretas, vindos de 42 países, exporão o que têm vindo a fazer em cinco áreas: paz e segurança, meio ambiente, desenvolvimento, economia inclusiva e novas tecnologias.
Entre as iniciativas que estão a ser promovidas em todo o mundo, encontram-se as “Escolas para o Perdão e a Reconciliação”, promovidas na Colômbia pela Fundação para a Reconciliação: através do uso de uma metodologia psicossocial, essas escolas têm como objetivo ajudar as vítimas de conflitos armados a superar a violência que têm de suportar diariamente.
Dinamizado na Índia pela organização EARTH5R, o projecto Acção-Colaboração-Transformação “visa melhorar a qualidade do meio ambiente e o estatuto dos cidadãos desfavorecidos e reduzir o desperdício de plástico por meio de novos modelos de negócios sustentáveis”.
Na República Centro-Africana, a Agência de Execução de Obras de Interesse Público pretende promover a criação de empregos temporários para pessoas que vivem em situação de pobreza e vulnerabilidade em todo o país.
A recuperação económica de uma zona da Palestina, o distrito de Jenin, melhorando as perspectivas de rendimento sustentável para os habitantes, estabelecendo uma incubadora de ideias que apoie o desenvolvimento de pequenas e médias empresas, é um projecto promovido pelo Staff Consultivo Palestiniano para Organizações Não-Governamentais de Desenvolvimento.
O “Índice de riscos de corrupção no México”, elaborado pelo Instituto Mexicano para a Competitividade, serve para comparar “os padrões internacionais relevantes para contratos públicos” e analisar “a regulamentação mexicana para criar uma notação de referência sobre a corrupção”.
Os projectos apresentados no “espaço de soluções podem ser conhecidos aqui.
1918: pacificação entre a República e os católicos
Aquilo que seria impensável ocorreu: a guerra permitiu a reconciliação entre “as duas Franças”, a republicana e a católica. A observação de François Huguenin em La Vieé acompanhada por uma trágica contabilidade, a das baixas que a guerra provocou: um milhão e 400 mil mortes em combate pela França e mais de quatro milhões de feridos, em quase 40 milhões de habitantes e oito milhões de mobilizados. Destes, 32.699 eram sacerdotes, seminaristas e religiosos, incluindo 23.418 seculares e 9.281 regulares.
A Igreja Católica, acrescenta François Huguenin, pagou o seu tributo à defesa da nação: “Metade dos mobilizados estava ao serviço da saúde, incluindo enfermeiros particularmente expostos durante os combates; a outra participou da luta ao lado de presidentes de Câmara anticlericais e sindicalistas”.
(Sobre o início da Grande Guerra de 1914-18, e o papel de vários cristãos na tentativa de evitar o conflito, pode ler-se também este texto; e sobre o episódio que, em 1914, levou os soldados a interromper as hostilidades para celebrar o Natal, pode ver-se também aqui uma evocação musical e em vídeo; ilustração acima;: capa do semanário católico francês La Vie, com o tema de capa dedicado ao final da Grande Guerra: “1918 - E o mundo mudou”, reproduzida daqui.)
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