Entrevista de António Marujo
Imagem de Maria Wilton
“Deus não é um problema, é um mistério. E a fé é a coragem de entrar na nuvem do mistério”, diz o teólogo checo Tomáš Halík, que esta semana esteve em Lisboa, a propósito da edição do seu último livro, Diante de Ti os Meus Caminhos (ed. Paulinas). Obra que cruza as memórias e a reflexão teológica e antropológica a que o autor já habituou os seus leitores, Halik percorre, nela, os anos da aproximação à fé cristã durante a sua juventude, a opção pelo catolicismo e pela missão de presbítero, a clandestinidade e as proibições e controlos a que foi sujeito, a morte do colega Jan Palach, a democratização da então Checoslováquia ou a amizade com o primeiro Presidente eleito, Vaclav Havel.
A partir do seu trabalho com jovens estudantes, Halik traça, também, as suas reflexões sobre o papel do cristianismo na contemporaneidade. “Não acredito numa Igreja sem feridas”, diz, para manifestar a sua extrema preocupação com o fenómeno dos populismos contemporâneos: “Comunismo e populismo não se podem comparar. No comunismo, precisamos de coragem. Agora, precisamos de sabedoria.”
Ao longo da entrevista, Tomáš Halík pára por vezes durante largos segundos para pensar na resposta. Noutras, volta atrás, porque a ideia não estava a sair como pretendia. “Escrevo os meus livros para pessoas com mentes e corações abertos”, dirá, a terminar.
P. – Nos seus livros, cita várias vezes Nietzsche e, sobretudo, o seu “Assim Falava Zaratustra”. Neste último, escreve mesmo que começou a ler Nietzsche e volta a ele sempre, em diferentes momentos da sua vida.
Há várias similitudes entre Nietzsche e Søren Kierkegaard, que foi um grande cristão, não conformista. Também há semelhanças com Pascal. Todos eles lutam contra um cristianismo superficial e de massa. Nietzsche criticava Jesus mas há também alguns capítulos no seu Anti-Cristo, que é como uma canção de amor e admiração por Jesus. Penso que os críticos perspicazes são sempre bons parceiros para pensar, provocadores do pensamento.
– Termina este novo livro escrevendo: “Acredito que o NADA, ao qual nos dirigimos na morte, é apenas outro nome maravilhoso de Deus.” Isto é uma profissão de fé cristã ou uma declaração ateia?
– É uma citação do grande místico Mestre Eckart: “Deus não é nada das coisas deste mundo.” É uma purificação da idolatria presente em alguns dos nossos conceitos de Deus. Alguns retratos de Deus são humanos e não podemos viver sem eles. Mas, se esquecermos a diferença entre o símbolo e o que ele simboliza, isso é idolatria, fundamentalismo. Mestre Eckart está a dizer: Deus não é nada assim.
Deus não é um problema, é um mistério. E a fé é a coragem de entrar na nuvem do mistério, para viver este mistério, este paradoxo da vida sem medo e com confiança.
– Esse mistério de que fala tem algo a ver com o “horizonte absoluto” de que falava o Presidente Havel?
– Essa expressão de Havel é inspirada em Martin Heidegger e no existencialismo. Sim, há alguma similitude. Penso que é algo muito típico da espiritualidade checa: [muitos checos] não são ateus, são muito sensíveis aos valores espirituais, mas não são capazes de falar de Deus em termos tradicionais.
O “alguma coisa” é a religião mais difundida no nosso tempo: “Não acredito em Deus mas alguma coisa deve existir...” Este é um desafio para os teólogos, para a hermenêutica sobre o que será “alguma coisa”. Deus não é “alguma coisa”, não é um assunto entre outros assuntos, é algo muito diferente, o que nos provoca a meditar e ir mais fundo.
– No seu Paciência Com Deus, recorda a história de uma parede em Praga onde alguém tinha escrito “Jesus é a resposta”, e outra pessoa teria acrescentado “Mas qual era a pergunta?” A Igreja e os cristãos têm demasiadas respostas para perguntas que esqueceram?
– Receio que sim.
– Pode dar um exemplo de uma dessas perguntas mais importantes?
– A pergunta sobre o sentido da vida. Não apenas enquanto questão teórica ou filosófica, mas uma questão prática: em todas as decisões, na nossa vida, estamos a responder de forma concreta à pergunta sobre o sentido da vida. O nosso agir é sempre uma resposta.
– Também escreve que muitas vezes concorda com os ateus, mesmo em quase tudo. É possível um crente dizer isso?
– Muitos ateus não são inimigos de Deus, mas são inimigos de um certo tipo de teísmo, de uma teoria humana sobre Deus. E há vários tipos de teísmo muito problemáticos. O ateísmo pode ajudar-nos a purificar a nossa fé da idolatria.
– A secularização é um sinal dos tempos, como o padre Arturo Sosa, o geral dos jesuítas, disse no último Sínodo?
– Foi um sinal dos tempos em décadas anteriores. Agora, vivemos num mundo pós-secular: apesar dos muitos conceitos de secularização, é errada a ideia de que a religião está a desaparecer. A religião não está a desaparecer, apenas desapareceu do ponto de vista de alguns média e de alguns cientistas sociais dos séculos XIX e XX. Hoje em dia, a religião está aqui.
Não diria que Deus e a religião estão de volta, porque nunca desapareceram. Mas estão em transformação. Somos testemunhas da grande transformação da religião. O modo tradicional de viver a religião está cada vez mais débil, está a perder a sua biosfera cultural e social.
– Em que sentidos se está a transformar?
– A religião, por vezes, transforma-se em ideologia política, algo muito perigoso; outras vezes, transforma-se em espiritualidade, que deve ser desenvolvida para não nos tornarmos em alguém que vira costas ao mundo, mas ante alguém que encara o misticismo com olhos abertos.
Contemplação e acção: grandes personalidades como o fundador da comunidade de Taizé, Roger Schutz, falavam da contemplação e acção. E era isso que ele queria dizer: precisamos da teologia pública e de uma religião pública, que esteja no mundo para defender os direitos humanos. Não é preciso ter uma ideologia política para ser activo na vida pública, mas antes ter uma dimensão mais profunda da contemplação e espiritualidade.
– A indiferença é pior que o ateísmo militante?
– Sim. Há um ateísmo militante estúpido e é sempre difícil discutir com gente estúpida. Mas há também o ateísmo de pessoas que têm os seus corações feridos, que estão feridas por algum mal nas suas vidas. Devemos tomar essas pessoas seriamente porque este sentimento de que não há Deus é também um momento que faz parte da nossa fé cristã: é a fé da Páscoa, onde há morte e ressurreição.
Não há ressurreição sem cruz e, por vezes, há crises de fé na nossa vida pessoal ou na História, como uma participação mística no momento em que Jesus, na cruz, disse: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” Devemos entender esta pergunta. A resposta da ressurreição não é regressar ao Jesus do passado, mas abrir para uma nova dimensão. Por vezes, na nossa própria história ou na história da Igreja e da humanidade, algum tipo de fé tem de morrer. Mas, perante isso, o ateísmo não é a única possibilidade, há uma fé mais profunda, um an-ateísmo, um acreditar de novo. É a ressurreição da nossa fé, que é a transformação.
– Ao falar de pessoas feridas, escreve no seu livro O Meu Deus é um Deus Ferido: “Ao tocar nas feridas do mundo, tocamos em Deus.” Significa que no ateísmo e no agnosticismo há também muitas feridas?
– Há pessoas que dizem “eu gostaria de acreditar mas não consigo, porque estou tão ferido por este mal...” Devemos abraçar este tipo de ateísmo para dizer às pessoas esta experiência que é o absurdo do mal e o tempo de escuridão, a experiência da noite escura da alma.
As noites escuras da alma são um momento muito importante. Não devemos anular essas perguntas de modo simplista, devemos abraçar essas pessoas, especialmente nas feridas dos corações humanos.
– É esse o sentido do que o Papa tem referido várias vezes, sobre a Igreja ser um hospital de campanha?
– Absolutamente, é uma grande ideia. Louvo o Papa Francisco por essa ideia. Devemos desenvolver essa metáfora, porque a Igreja deve também fazer prevenção, cura e recuperação das feridas na nossa vida.
Uma das grandes doenças na nossa vida é o populismo, o novo populismo, o racismo, a xenofobia, o medo e o desespero, tão forte no nosso mundo. E não só a Igreja, mas também a imprensa livre, as universidades, devem ser um hospital para curar essa doença. E também trabalhar na prevenção, preparando as pessoas para confrontarem as mentiras, as notícias falsas e todos esses [males].
– O que é pior: o populismo, o racismo, a xenofobia ou um regime comunista, sem liberdade?
– Uma vez, uns americanos disseram-me, numa conferência, que é tudo o mesmo. Contei-lhes uma anedota: numa sinagoga, estava escrito: “se entrar sem o solidéu, é como cometer adultério”. No dia seguinte, alguém tinha acrescentado: “Eu experimentei ambos, mas não tem comparação.” Comunismo e populismo não se podem comparar: no comunismo, precisamos de coragem; agora, precisamos de sabedoria.
– Subscreve a ideia do Papa que diz que estamos já a viver uma nova guerra mundial aos bocados?
– Sou um pouco mais cauteloso com a metáfora da guerra. É um confronto com muitos males no nosso mundo. O populismo é o pior que conheço.
– Era amigo e muito próximo de Vaclav Havel e de outros líderes da transição democrática checa. Qual era a maior virtude de Havel?
– Era ser um defensor da liberdade, da dignidade e dos direitos humanos. Muitas pessoas do nosso mundo buscam a aprovação dos outros. Ele foi muito importante, não só para o nosso país, mas também para o nosso mundo como um político que não era só um jogador com poder, mas um pensador. Era uma inspiração moral e espiritual para o povo, lutando contra preconceitos e estereótipos – o que requeria grande coragem, porque muitos políticos dizem apenas o que as pessoas esperam.
Lembro-me que, uma vez, estive num debate na televisão com um dos nossos políticos no poder. Quando saímos, disse-lhe que o que ele tinha dito era mentira e ele respondeu: “Verdade? O que é a verdade? Eu estou a falar com os meus eleitores e sei o que eles querem ouvir. Não estou interessado na verdade.” Essa é a tragédia.
– Pilatos perguntou “o que é a verdade?” e essa foi a única pergunta que Jesus não respondeu...
– Sim, porque ele era a resposta. Nunca ouvi na vida esta pergunta de Pilatos, mas entendo-a. Foi a mesma resposta desse político: não estou interessado na verdade, mas no poder. O que se pode dizer ou responder? Jesus estava ali como a resposta.
“Tenho medo do populismo. Há muitos monstros que devemos olhar nos olhos; se calhar, são parecidos connosco.”
– O Presidente Havel sugeriu que lhe sucedesse no cargo. Porque recusou?
– Eu pensei nisso. Mas, como padre e professor, muito próximo dos jovens, tenho possibilidade de dizer o que verdadeiramente penso e o que é a minha consciência. A situação após a revolução [1989-2003] era diferente, mas posso, na posição em que estou, servir a minha nação um pouco melhor. Especialmente hoje, com a atmosfera no nosso país que, como noutros, está tão destruída pelo populismo.
Alguém que lute contra estes estereótipos não tem possibilidade de ganhar as eleições. Devemos preparar a atmosfera moral, devemos ser um hospital de campanha e preparar as mudanças do clima que se instalou na Europa e no resto do mundo. [Os populistas] sabem como expressar o que as pessoas pensam ou os medos e a ansiedade com que vivem. E os políticos são mestres em expressar e usar estes sentimentos das pessoas.
– Porquê?
– Isto está ligado ao processo de globalização. A globalização foi a razão principal da queda do comunismo: a economia estatal planificada e um regime que controlava as ideias e a cultura não podiam aguentar-se num mercado livre de bens e ideias.
Agora, o processo de globalização chegou a um ponto em que testemunhamos o seu lado negro. Há muita gente desapontada, porque não é aceite ou não escutam os seus problemas, e recebem instrumentos muito poderosos nas novas redes sociais, que são bolhas em que as pessoas estão sempre expostas a preconceitos e a ouvir apenas o que querem ouvir, não são confrontados com novas maneiras de ver o mundo. Por vezes, digo que as redes sociais são redes anti-sociais. Nessas bolhas há pessoas que apoiam e desenvolvem a sua ansiedade e agressividade. É um tempo muito difícil.
– Tem medo deste aumento do populismo?
– Claro que tenho. É um grande problema. Estamos a viver tempos difíceis – é um tempo interessante, mas difícil. Toda a gente tem a sua parte de responsabilidade e há muitas pessoas a irradiar medo e agressividade. Por outro lado, pessoas como Vaclav Havel ou o Papa Francisco irradiam confiança, humor, amor, esperança.
Há muitos monstros no nosso mundo. Richard Kearney, um psicanalista, disse: se fores perseguido nos teus sonhos por um monstro, olha o monstro nos olhos; provavelmente reconhecerás que o monstro é um pouco parecido contigo. Devemos ter a coragem de olhar para estes monstros nos olhos. Há tantas demonizações entre grupos de pessoas...
– Estamos a enfrentar os mesmos monstros que nos levaram à Grande Guerra e à Segunda Guerra Mundial?
– Há algumas semelhanças. O fascismo, o nazismo e o bolchevismo nasceram da crise económica, da grande depressão económica, que alimentou esses monstros. Agora, não estamos numa crise económica tão grande – no meu país, estamos muito bem –, é mais uma crise espiritual do que económica, é uma crise de identidade.
Claro que ambas estão ligadas: se há uma crise familiar, a família não tem capacidade de apoiar os jovens para criar a sua própria identidade. As pessoas mais fracas estão à procura de identidades colectivas: as seitas religiosas fundamentalistas, o extremismo político da esquerda e da direita, um novo conservadorismo na Igreja… Conheço muitos padres jovens que têm personalidades tão fracas que procuram uma imagem forte de conservadorismo e a distância em relação às pessoas. E isso é uma tragédia.
– Diz no livro que a sua missão como padre é construir pontes: entre católicos e não católicos, crentes e não crentes, diferentes gerações… Essa é uma experiência também física: muitos diálogos que teve durante a oposição ao comunismo começaram na Ponte Carlos, em Praga. A sua missão continua a ser a de fazer pontes?
– É mais difícil do que era há dez anos atrás: para construir pontes, somos confrontados com agressividade de ambos os lados, da esquerda e da direita. O meu autor preferido, G.K Chesterton, disse: “Se os magros te dizem que és gordo e os gordos dizem que és magro, pode significar que és normal.” Se somos atacados de ambos os lados, pode ser bastante normal, apesar de não ser muito agradável. Mas é parte da nossa missão e de dizer não ao radicalismo.
– Nos últimos anos também se comprometeu no diálogo inter-religioso... Construir pontes no mundo religioso é importante?
– Sim, muito importante.
Os contactos inter-religiosos têm algum risco, que é permanecer apenas do domínio dos académicos – muçulmanos, cristãos ou judeus. Entre eles entendem-se muito bem, mas melhor ainda do que falarem entre si é, por exemplo, colocar juntos jovens de diferentes religiões a dialogar, para entender a perspectiva do outro.
– Expressa no seu livro uma grande admiração pelo Reino Unido. Lamenta o Brexit? Estamos a destruir uma ponte entre europeus?
– Sim, acho o Brexitestúpido e trágico. Eu estava na Universidade de Oxford quando soube [o resultado do referendo] e todos os professores, que achavam que iam ficar dentro da UE, ficaram em choque. É outro tipo de populismo. Agora, muitos britânicos querem corrigir o erro. Seria uma possibilidade haver um segundo referendo, algo que seria lógico, pois precisamos de uma Europa forte e unida.
No leste temos a Rússia de Putin, um país muito perigoso: o bolchevismo acabou mas o mais perigoso foi o nacionalismo e imperialismo russo. Putin tem nas mãos o poder de converter de novo em colónias ou satélites os países à volta, colocando-os sob o seu controlo. As fake news, que agora estão por todo o lado na internet, vêm da Rússia com o propósito de destruir a confiança na UE, são um perigo muito importante. Precisamos de saber distinguir a qualidade da informação quando a vemos.
– Assinou uma carta, no ano passado, de apoio ao Papa. Porque é que ele precisa do apoio das pessoas?
– Porque há uma parte dos teólogos, padres e leigos que estão a lutar contra ele, pois querem voltar a um tempo antigo. Mas não é possível regressar a uma guerra que acabou. Devemos concentrar-nos em enfrentar os problemas do nosso mundo atual.
A oposição ao Papa Francisco é muito semelhante à oposição dos fariseus contra Jesus. Eles queriam leis, queriam prescrições severas e a mensagem do Papa Francisco é redescobrir o verdadeiro coração do Evangelho: o amor, a solidariedade, responsabilidade pelos pobres, responsabilidade pela criação. Isto não interessa a pessoas que têm outra agenda. Ele é um perigo para estas pessoas porque tem novas ideias e cria uma nova atmosfera – e este é o futuro da Igreja.
– Esse futuro depende do Papa?
– O futuro da Igreja depende da habilidade que ela tiver em comunicar com os que buscam. O número de pessoas que se identificam completamente com a Igreja está a diminuir, mas também diminui o número de ateus convictos. Já o número dos que procuram algo, pessoas com mente aberta mas que não estão satisfeitas com esta forma de cristianismo, está a aumentar.
Não devemos empurrar estas pessoas para estruturas existentes, mas abrir as estruturas físicas e mentais da instituição, enriquecendo-as com as experiências de quem anda à procura. O futuro da Igreja depende da maneira como comunicamos com essas pessoas e como os acompanhamos.
– Há limites na reforma desejada pelo Papa Francisco? A questão dos abusos sexuais pode ser um desafio ao ministério do Papa?
– Sim, porque é um grave sinal dos tempos: não só os abusos sexuais, mas também os abusos de poder na Igreja. Quando a Igreja perdeu o poder no mundo, muitos padres viraram este poder para a Igreja em si e converteram-no em poder sobre mulheres e crianças mais fracas.
A experiência desta explosão de escândalos não é só problema de alguns indivíduos, é um grande problema da Igreja. É algo como [depois do] Holocausto: na Alemanha, depois da Guerra, muitos alemães receberam as notícias sobre o Holocausto – porque eles não sabiam o que se passava – e viram-se confrontados com um grande mal que tinha sido feito em nome da nação alemã.
Hoje, estamos a ser confrontados com uma tragédia dentro da Igreja, de que muitos de nós não fazíamos ideia. Temos de refletir acerca destes assuntos, penso que tenha sido o mau uso da sexualidade e do poder. O que o Papa tem dito acerca do clericalismo está correcto, mas é necessária também uma teologia mais profunda, a partir de um ponto de vista antropológico acerca da humanidade e do papel da sexualidade na vida humana.
– São precisos também psicólogos nos seminários para aqueles que querem ser padres?
– Claro. Acho que muitos padres não são muito preparados para o ministério na maioria dos seminários, mesmo sem querer generalizar. Precisamos de melhor preparação espiritual e psicológica.
– Escreve que, por vezes, o seu corpo e a sua alma “doíam com o desejo pela mulher”. Não é habitual padres católicos falarem deste modo, destes assuntos. Os padres deviam expressar mais este tipo de sentimentos?
– Isso é parte da experiência de muitos padres e todas as crises são uma possibilidade de ir mais além. É possível transformar a energia e sentimentos sexuais em energia espiritual. Mas não é fácil e receio que muitos seminaristas o consigam fazer.
O celibato nasceu nos mosteiros, em comunidades com uma preparação espiritual muito grande. Talvez no futuro volte a ser assim. Mas não tenho a certeza se não há um tempo para pensar na possibilidade de viri probati, homens casados, serem ordenados. Devemos falar e pensar no assunto abertamente, criticamente e de maneira responsável.
“Os padres não deviam ser uma casta. É bom ter padres que vivem no meio das pessoas comuns e partilhem o seu modo de vida.”
– O padre Halík e o seu grupo de padres clandestinos defendiam uma terceira via de padres católicos: além dos padres das paróquias e da vida monástica, deveria haver padres a trabalhar no meio das pessoas comuns e isso ser parte da sua identidade. É possível chegar a esse ponto?
– Penso que sim. No futuro será mais normal haver padres trabalhadores, um conceito que já havia em França nos anos 1950. É uma experiência que tive e pela qual estou muito grato: ser padre na paróquia e professor catedrático. É muito importante para não estar tão isolado. Os padres não deviam ser uma casta, para ultrapassar a mentalidade do clericalismo. Haverá sempre padres em paróquias e em mosteiros, mas é bom ter padres que vivem no meio das pessoas comuns e partilhem o seu modo de vida e os seus problemas com maior proximidade.
– O irmão Aloïs, de Taizé, falou, no último Sínodo dos Bispos sobre os jovens, de uma Igreja acolhedora para os jovens. Estamos longe desse desejo?
– É muito importante estar em contacto com os jovens, que nem todas as pessoas da Igreja são capazes de ouvir com paciência e humildade. Estamos habituados a ser mestres e, às vezes, temos de ser os estudantes. Não posso falar no geral. Aloïs, de Taizé, é um grande amigo e eu estive várias vezes em Taizé. A comunidade é um exemplo de como convidar os jovens a partilhar a sua experiência, a estar juntos, a rezar juntos. Tenho a mesma experiência na nossa paróquia académica: baptizei, nestes quase 30 anos, mais de dois mil jovens, após dois anos de catecumenado. A nossa paróquia está sempre cheia de jovens ao domingo, naquele a que chamam o “país mais ateu”.
Isto depende do modo como se comunica com estas pessoas e o que lhes podemos oferecer. Por isso, trabalhamos com artes, retiros espirituais, alguns com filmes e análise desses filmes, arte moderna na igreja barroca... Não é suficiente apenas celebrar a missa. As pessoas querem atmosfera na sua vida para a sua busca espiritual. Se há alguém que consegue fazer e inspirar isso, as pessoas virão. Nada está perdido mas limitar-se apenas a repetir fórmulas ou ter um “aleluia, aleluia” emocional não é suficiente.
Temos de tomar as pessoas a sério e partilhar as suas questões e problemas, termos a mente aberta, conhecendo a sua cultura e valores. É possível trabalhar com os jovens mas tem de ser de modo diferente de antes.
– Pensou em ser padre jesuíta. Porque é que a experiência e a espiritualidade jesuíta são tão importantes para si?
– Há algo de muito corajoso em ir para os lugares mais difíceis. E há uma certa disciplina e liberdade interior em ser jesuíta. Os Exercícios Espirituais são uma obra prima, no sentido de reconhecer como Deus está activo na normal experiência no dia-a-dia.
É algo que ensino aos jovens: não esperem uma grande revelação, cada acontecimento da nossa vida é uma revelação de Deus e ele está presente em todos os momentos, os bons e as crises. Há palavras de Deus em acontecimentos da nossa vida e da nossa sociedade, mas precisamos da cultura para os distinguir e contemplar, indo mais e mais fundo. Para mim, essa é uma espiritualidade muito importante para a Igreja e para o mundo.
“Escrevo os meus livros para pessoas com mentes e corações abertos, que estão à procura e que têm questões e dúvidas.”
– No livro Quero Que Tu Sejas, escreve que a questão “Deus existe?” é semelhante a “O que é o amor?” Os cristãos esqueceram esta ligação entre Deus e o amor?
– Não quero generalizar. Temos de redescobrir esta ligação entre Deus e amor porque Deus é amor. Jesus relativizou muitos valores mas havia algo que, para ele, era absoluto: o amor. Digo por vezes aos jovens que não é tão importante acreditar em Deus, mas amar Deus. E eles dizem “mas eu tenho que acreditar primeiro”. Respondo que não: apenas na experiência do amor se pode perceber o que quer dizer a palavra de Deus. Se não se tiver experiência com o amor ao mundo, aos outros, à natureza, etc., Deus será uma palavra vazia. Só na experiência de amar as pessoas se pode entender o que a palavra Deus quer dizer.
– Lemos nos seus livros muitas referências acerca de muitas outras pessoas: Chesterton, em primeiro lugar, porque é o seu autor favorito. Mas também muitos outros, diferentes, como Kafka, Bonhoeffer, Unamuno, Tillich, Thomas Merton, Rahner, Graham Greene, Fellini, Bergman, Dostoievski, James Jooyce, Jack Kerouac... Como descreveria o seu trabalho de escrita, a partir de todas essas pessoas?
– Há uma tradição na cultura humana, e também na religião e na Igreja, de pessoas que percebem o mundo e a vida como um paradoxo. Vêm os dois lados e não estão satisfeitos com perguntas simples, são capazes de sair dos paradoxos da vida. Podemos falar de São Paulo, Santo Agostinho, Blaise Pascal, Kierkegaard, Chesterton e muitos outros – incluindo o padre Tolentino [Mendonça], com quem partilho muitas semelhanças no modo de pensar.
É importante escrever livros teológicos não só como livros de dogmas e artigos de fé. Escrevo os meus livros para pessoas com mentes e corações abertos, que estão à procura e que têm questões e dúvidas, com sensibilidade espiritual. Não estão satisfeitas com as respostas simples para questões complicadas e muitas delas precisam de alguém que as acompanhe – não que as manipule, mas que as acompanhe. Esse é o sentido da minha literatura e do meu trabalho pastoral.
(Entrevista realizada e publicada em parceria com o Ponto SJ)
(Entrevista realizada e publicada em parceria com o Ponto SJ)
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