Livro
Foi socialista e católico, um dos
primeiros defensores do capitão Alfred Dreyfus (acusado de traição por ser
judeu), depois de ter sido marcado desde a infância por Victor Hugo. Jornalista e
poeta, Charles Péguy morreu há 100 anos, a 5 de Setembro de 1914, em plena I
Guerra Mundial, durante a batalha do Marne (próximo de Paris). Um dos seus
poemas mais importantes, Os Portais do Mistério da Segunda Virtude,
será lido na íntegra esta quinta-feira, a partir das 21h30, na Capela do Rato,
em Lisboa, pelo actor e encenador Luís Miguel Cintra, a partir da tradução de Armando
Silva Carvalho, publicada agora nas Paulinas.
Inclassificável, o gigantismo de
Péguy nas letras francesas é admitido por todos. Por todos? Não: no Estado
francês, há um reduto de quem o considera um factor de “demasiada divisão” para
que ele possa ser ensinado, por exemplo, no programa de agregação de letras
modernas, uma proposta que tinha sido feita por um grupo de intelectuais
franceses.
O episódio deu-se no início deste
ano, recorda a Histoire du Christianisme Magazine no seu número 74 (Novembro-Dezembro 2014). “Se expurgássemos a literatura francesa de todos os seus autores que são
factores de divisão, pergunta-se quem poderia restar”, comenta Yves Bruley num
artigo sobre Péguy, a propósito do centenário da sua morte no campo de batalha
da I Guerra Mundial.
No prefácio da edição portuguesa
d’Os Portais do Mistério da Segunda
Virtude, José Tolentino Mendonça escreve sobre esse carácter poliédrico de
Péguy: “Dizia-se dele que era um anarquista perigoso que, em vez de lançar
petróleo, lançava água benta. Mas, àqueles que o acusavam de viver
continuamente entre escolhas paradoxais, ele respondia que ‘apenas aprofundava
o seu coração num único caminho’.” Apaixonado da causa social, militante socialista
e membro das Conferências de São Vicente de Paulo, Péguy escreveu: “Não sou um
santo. A santidade reconhece-se imediatamente. Sou um pecador bom. (...)
Ninguém é mais competente do que o pecador em matéria de Cristianismo.”
Claire Daudin, presidente da
Associação L'Amitié Charles Péguy, defende que Péguy não pode ser visto como um
católico devoto, sem mais. “Na Igreja do seu tempo era um marginal.
Recalcitrante à autoridade, não ia à missa, e como não era casado religiosamente,
não tinha acesso aos sacramentos. Ele sofria por isso, compensando através da
oração, especialmente a Maria. Completamente impregnado pela leitura dos
Evangelho, do catecismo e do breviário [Liturgia das Horas], alimentou a sua
obra de textos litúrgicos. Tinha uma vida de fé muito intensa”, afirma, em
entrevista a Chantal Joly, cuja tradução pode ser lida aqui na íntegra.
Charles Péguy (ilustração reproduzida daqui)
O pensamento religioso de Péguy,
recorda ainda a mesma especialista, influenciou teólogos marcantes do século
XX, como Jean Danièlou, Henri de Lubac ou Hans Urs von Balthasar. “Muitas das
suas intuições, que pareciam novas para o seu tempo, fazem agora parte do nosso
património: o Deus de misericórdia que vence sobre o Deus justiceiro, o laço
entre salvação e liberdade, etc.” E lamenta: “É pena que ele seja tão pouco
explorado na catequese ou no ensino católico. A Igreja não deve desconfiar
desses grandes escritores que são Péguy e Bernanos: eles são um dom para ela.”
Sobre a esperança, a “pequena
esperança” em contraste com as suas irmãs mais velhas que são as outras duas
virtudes, diz Claire Daudin que Péguy se pocupou muito dos filhos “e como pai
esperou o melhor para eles”. Por isso entendeu “a esperança que Deus coloca no
ser humano. Na medida em que enfrentou na sua vida numerosas dificuldades,
celebrou este impulso vital que não tem nada a ver com um optimismo beato.”
Nesse longo elogio da esperança
que constitui Os Portais do Mistério da
Segunda Virtude, Péguy coloca a voz de Deus a falar dessa virtude e a
compará-la com a fé e a caridade: “Mas a esperança, diz Deus, essa sim causa-me
espanto./ Essa sim é digna de espanto.”
No poema em verso livre, o poeta aponta
a esperança como a virtude das promessas de Deus, que garante o futuro, que
permite o recomeço permanente. “Porque é que essa fonte da Esperança corre
eternamente?/ Que fonte é essa, eterna, que corre eternamente,/ Eternamente
jovem, eternamente pura?”
No poema, a esperança vai sendo relacionada
com o trajecto bíblico, desde Deus Criador ao mistério da encarnação: “O
Criador tem necessidade da sua criatura, desceu ao ponto de ter de precisar da
sua criatura”.
Com uma linguagem por vezes
inocente, como se fosse uma criança a falar, o poema lê-se como uma peça
musical e uma grande afirmação de adesão à proposta cristã, através do uso de
metáforas de carácter familiar ou campestre, por exemplo. Ou, em outros casos, da
referência e glosa a textos bíblicos: “Um
homem tinha dois filhos./ De todas as palavras de Deus é esta que desperta
o eco mais profundo.”
A vida e a proposta de Jesus, bem
como a teologia da eucaristia enquanto doação e despojamento cruzam-se também
com essa linguagem. Em outras ocasiões, Péguy utiliza uma linguagem mais
patriótica, própria da época: “Mas é aqui, diz Deus, nesta doce França, a minha
mais nobre criação...” Mas insiste sobretudo na ideia da esperança como a
virtude que dá a liberdade e a alegria: “O que ela queria era andar sem parar.
Sempre em frente./ Saltar. Bailar. Sente-se tão feliz.”
A esperança de Péguy constrói-se
caminhando, seguindo a fé e a caridade mas, de facto, conduzindo-as a ambas. “O
que lhe interessa é simplesmente o caminho./(...) Porque o que importa é
caminhar. Caminhar sempre./ É isso que conta. E como se faz. É o próprio
caminho. E a forma como é feito.” A esperança é, enfim, confiança plena no
devir: “Por isso Eu vos digo: Adiai para amanhã os cuidados e penas/ Que hoje vos
apoquentam/ E que hoje vos devoram.”
Seduzida pela “lucidez profética”
de Péguy, Claire Daudin dizia ainda, na entrevista citada, que o poeta “percebeu
as derrapagens que conduziram aos totalitarismos do séc. XX. Ele defendia, por
exemplo, o ensino para a aprendizagem da justiça, mais do que da luta de
classes.” Mas que procurava ir além da justiça, a partir da sua perspectiva
cristã. N’Os Portais..., escreve: “E
passo a passo, a Justiça recuou perante a Misericórdia./ Para que a
Misericórdia avance. Para que a Misericórdia ganhe./ Pois se existisse apenas a
Justiça e a Misericórdia não entrasse em cena,/ Quem seria salvo?”
(Aqui podem encontrar-se várias ligações para textos publicados recentemente na imprensa francesa, a propósito
do centenário da morte de Péguy; um texto, também em francês, sobre
Os Portais do Mistério da Segunda Virtude
pode ser lido aqui; outros dois textos, sempre em
francês, acerca de Charles Péguy e da sua obra, podem ser encontrados aqui e aqui.)
textos anteriores no blogue:
Homilias do Papa, António Vieira e a avó Europa (crónicas);
Albino Reis, um missionário entre tormentas;
Papa deseja presença mais relevante de mulheres na teologia;
Advento, estranho tempo de gravidez (crónica);
Um Requiem português espiritual e transcendente (disco de António Pinho Vargas);
Este livro arde por dentro dos olhos (livro A Leitura Infinita, de José Tolentino Mendonça)
textos anteriores no blogue:
Homilias do Papa, António Vieira e a avó Europa (crónicas);
Albino Reis, um missionário entre tormentas;
Papa deseja presença mais relevante de mulheres na teologia;
Advento, estranho tempo de gravidez (crónica);
Um Requiem português espiritual e transcendente (disco de António Pinho Vargas);
Este livro arde por dentro dos olhos (livro A Leitura Infinita, de José Tolentino Mendonça)
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