O Yad Vashem, o Memorial do
Holocausto de Jerusalém, decidiu outorgar o título de “Justo entre as Nações”
ao padre Joaquim Carreira, vice-reitor e reitor do Colégio Pontifício
Português, de Roma, entre 1940 e 1954. Este título distingue não-judeus que,
durante o Holocausto, tenham arriscado as suas vidas para salvar judeus.
A declaração do Yad Vashem, a que
o RELIGIONLINE teve acesso em primeira mão, recorda alguns dados biográficos do
padre Carreira: nascido em 1908 numa aldeia próxima de Fátima, um famoso lugar
de peregrinação católica, ordenado padre em 1931 e formado na pilotagem de
aviões; em 1940, mudou para Roma, onde viria a tornar-se vice-reitor e reitor
do Colégio Pontifício Português, que alberga padres portugueses a estudar na
capital italiana.
Quando Roma foi ocupada pelos
nazis em Setembro de 1943, recorda ainda o texto do Yad Vashem, monsenhor
Carreira ofereceu abrigo a várias pessoas perseguidas pelos nazis, incluindo
três membros da família Cittone: Elio, o seu pai Roberto e o seu tio Isacco. No
relatório da actividade do colégio, Carreira escreveu: “Concedi asilo e
hospitalidade no colégio a pessoas que eram perseguidas na base de leis
injustas e desumanas.”
Apesar de o colégio ter à porta um
aviso do comando militar alemão proibindo quaisquer buscas no seu interior, por
ser território da Santa Sé, os militares alemães entraram uma vez no edifício,
à procura de refugiados. Todos os que estavam ali ocultados – resistentes, antifascistas,
partiggiani, judeus – conseguiram esconder-se
em sítios previamente combinados e sugeridos pelo reitor. Mas a família Cittone
considerou mais seguro procurar outro abrigo, deixando o colégio pouco depois. O
que não impede Elio Cittone, sete décadas depois, de admitir: “Estou-lhe muito
grato e recordo sempre o facto de ele me ter salvo a vida.”
A decisão do Yad Vashem foi tomada
a 4 de Setembro pelo seu Departamento dos Justos mas só agora divulgada. E deixa
muito contente o sobrinho de monsenhor Carreira. o também padre João Carreira
Mónico, dos Missionários Espiritanos, que em declarações à SIC revelou ter ficado “surpreendido”, acrescentando que "esta distinção significa o reconhecimento do trabalho, percurso e atitude caritativa, de risco, por parte de monsenhor Joaquim Carreira", mobilizado pela "diplomacia informal" do Vaticano que, nos anos da ocupação nazi de Roma, permitiu o acolhimento de refugiados nas casas religiosas.
O título de Justo entre as Nações
(Chasidei Umot HaOlam, em hebraico) é
retirado da literatura sapiencial da tradição judaica, explica-se no sítio do
Yad Vashem na internet. O título designa os não-judeus que
ajudaram judeus em tempos de perigo ou que observam sete regras básicas do
judaísmo estabelecidas na Bíblia – entre as quais a proibição de derramamento
de sangue. O Yad Vashem tomou o conceito para designar as pessoas que salvaram
judeus durante o Holocausto, arriscando as suas próprias vidas.
Joaquim Carreira passa a ser o
quarto português a ser declarado Justo. Além dele, já tinham sido declarados Aristides
de Sousa Mendes, o cônsul português em Bordéus que, desobedecendo às ordens de
Salazar, atribuiu vistos a mais de 10 mil judeus que fugiam dos nazis; Carlos Sampayo
Garrido, embaixador de Portugal na Hungria, que terá salvo uns mil judeus,
atribuindo-lhes documentação portuguesa e colocando-os a salvo em casas da
embaixada; e José Brito Mendes, operário português casado com uma francesa e
residente em França, e que salvou uma menina, filha de judeus.
As pessoas declaradas “Justo entre
as Nações” são distinguidas com uma medalha e um certificado de honra, além de
verem os seus nomes inscritos no mural de honra do Jardim dos Justos, do Yad
Vashem – onde uma pequena floresta de árvores homenageia também os seus nomes.
O título concede ainda a cidadania
honorária de Israel aos Justos ou, se já tiverem morrido, a cidadania póstuma.
Em Janeiro de 2014, o número de Justos declarados pelo Yad Vashem chegava aos
25.271, originários de 49 países diferentes (ver estatísticas aqui; o registo de dois portugueses e
não três é porque José Brito Mendes está contabilizado como francês, embora nunca
tenha renunciado à nacionalidade portuguesa).
A entrega do diploma do padre
Joaquim Carreira – que será recebido por familiares do antigo reitor – deverá
ocorrer na Primavera ou Verão de 2015, na Embaixada de Israel em Lisboa.
Em 23 Dezembro de 2012, o último
trabalho que publiquei no Público (na
revista 2), antes de sair do jornal, foi precisamente para contar a
história do padre Joaquim Carreira, centrada nos factos de Roma. Foi esta
investigação, e o testemunho de Elio Cittone nela citada, que permitiu ao Yad Vashem declarar Joaquim Carreira como Justo entre
as Nações. Fica a seguir o texto na íntegra.
A história do padre aviador que foi para Roma salvar judeus e
antifascistas
Das janelas ou do terraço do
Colégio Pontifício Português avistava-se, a 200 metros, a robustez circular do
Castelo de Sant’Angelo que, antes de se tornar museu, foi sepulcro de Adriano,
palácio de papas e prisão. Mas, naqueles meses de 1943-44, os refugiados que
viviam no colégio – a escassos cinco minutos a pé da praça de São Pedro – só
raramente podiam espreitar as águas do Tibre ou o castelo. Acolhidos pela
generosidade do reitor, o padre Joaquim Carreira, limitavam-se a passear nos
corredores, a rezar na capela, a ler, comer e dormir. Por vezes, havia pequenas
escapadelas ao terraço.
Essa é, pelo menos, a descrição de
um dos 40 refugiados acolhidos no colégio – onde ainda hoje ficam alojados os
padres portugueses que estudam na capital italiana – nos tempos da ocupação de
Roma pelos nazis. “Os dias eram longos”, escreve na sua autobiografia o médico
Giuseppe Caronìa, reitor da Universidade de Roma e dirigente do Partido
Popular/Democracia Cristã. Entre os hóspedes inesperados do colégio, estiveram
médicos famosos, judeus e antifascistas.
O edifício do Colégio Português,
à época dos acontecimentos
Um novo Aristides de Sousa Mendes?
Tal como o cônsul português em Bordéus, ou também como Sampaio Garrido e
Teixeira Branquinho, em Budapeste, que concederam vistos e refúgio a muitos
judeus e outros perseguidos, a acção do padre Joaquim Carreira permitiu salvar
vidas – mesmo se em menor número que os diplomatas referidos.
Essa é, pelo menos, a convicção
dos refugiados que passaram pelo colégio entre Setembro de 1943 e Junho de 1944
(os meses da ocupação de Roma pelas tropas nazis). Nenhum deles esqueceu o
padre Joaquim Carreira. E, depois da libertação da cidade, vários lhe escreveram
a agradecer a hospitalidade e o facto de, com isso, terem continuado vivos.
“Era muito gentil”, recorda à
revista 2 o judeu italiano Elio Cittone. Elio tinha 16 anos quando
esteve no colégio, cerca de um mês e meio, levado pelo tio. “Nunca mais o vi”,
diz-nos agora, aos 85 anos, referindo-se ao padre português. “Mas estou-lhe
muito grato e recordo sempre o facto de ele me ter salvo a vida.”
Este depoimento pode levar o nome
de Joaquim Carreira a ser considerado “justo entre as nações”, o título que o Yad
Vashem (YV), o Memorial do Holocausto em Jerusalém, concede a pessoas que
arriscaram a vida para salvar judeus durante o Holocausto.
Avraham Milgram, investigador do
YV, diz-nos que, para que isso aconteça, a pessoa salva tem de testemunhar e
descrever as circunstâncias em que foi ajudada. Depois, a candidatura é
apreciada pelo departamento dos Justos do YV. Será esta instância que
averiguará se havia perigo de vida para os judeus salvos, se quem os salvou
agiu sem receber nada em troca e se os factos ocorreram em regiões sob ocupação
nazi ou onde houve colaboracionismo.
O bispo e historiador português
Carlos Azevedo, que trabalha actualmente no Conselho Pontifício para a Cultura,
considera que “a atitude humanista do padre Joaquim Carreira demonstra coragem
e ousadia, sem publicidade”. Em declarações à revista 2, a propósito deste
caso, diz: “Ele pode colocar-se ao lado de outras figuras, entre quem
desobedeceu às autoridades desumanas por grandeza de alma, por obediência à
consciência, correndo graves riscos.”
O padre Carreira não tinha ido
para Roma muito satisfeito. João Mónico, seu sobrinho e também padre, conta na
biografia que escreveu, Monsenhor Joaquim
Carreira – Apóstolo do Bem, na Guerra e na Paz (ed. de autor, 2008), que o
tio não aceitou, de início, a ideia da partida. João Mónico tinha 33 anos
quando, em 1974, foi de Angola para Roma estudar e aí passou algum tempo com o
tio. “Era inteligente, afável, bem falante, delicado, compreensivo mas exigente
consigo e com os outros”, descreve à revista 2. Mesmo não satisfeito com a
decisão do bispo de Leiria, Joaquim Carreira chegou à capital italiana a 4 de
Maio de 1940, com 31 anos, para ocupar o cargo de vice-reitor do Colégio
Pontifício Português. Em 1941, com a morte do reitor, monsenhor Manuel Pereira
Vilar, passaria a reitor interino.
“A situação excepcional criada
durante a ocupação alemã de Roma não podia não fazer sentir a sua influência
também na vida” do Colégio Pontifício Português, escreve Joaquim Carreira num
relatório sobre a vida do colégio no ano lectivo de 1943-44, que permaneceu
inédito até agora e que aqui se revela nos seus pontos principais. A
revista 2 teve acesso aos arquivos do Colégio Português, falou com
pessoas que conheceram o padre Carreira, com investigadores e historiadores,
com responsáveis e documentalistas da Comunidade Hebraica de Roma, com
familiares e descendentes dos refugiados – além de Elio Cittone, possivelmente
o último refugiado do Colégio Português ainda vivo. Tudo para procurar pistas
que permitissem conhecer com rigor os contornos de uma história praticamente
desconhecida, incluindo na reconstituição das histórias de vários dos
refugiados.
O aviso do comando nazi, proibindo buscas
no interior das casas religiosas, dependentes da Santa Sé
Pelo colégio passaram pelo menos
40 pessoas, conforme o próprio padre escreve nesse relatório – e no qual
regista exactamente 39 nomes de foragidos. Mas há pelo menos um depoimento de
um dos refugiados que fala em 50 pessoas e outro em 42. Como nem todas
estiveram ao mesmo tempo na casa, será difícil ter certezas sobre o número
exacto.
“Pela graça do céu e certamente
também em parte pela grandíssima prudência mantida mesmo nos pormenores, o
nosso colégio ficou isento de visitas inoportunas e de surpresa da polícia,
como se verificou no colégio Pio Lombardo, no Instituto Pontifício Oriental e
na Basílica de São Paulo Extra-Muros”, edifícios da Igreja onde também se
albergavam padres. Nessa altura, os edifícios da Santa Sé tinham afixados à
porta dois avisos, em italiano e alemão. Assinados pelo comandante alemão, o
general Reiner Stahel, os cartazes diziam: “Este edifício tem fins religiosos e
está na dependência do Estado da Cidade do Vaticano. São interditas quaisquer
buscas ou apreensões.” Apesar disso, como o próprio padre Carreira nota no
relatório, muitas eram as casas religiosas invadidas à procura de refugiados.
Elio Cittone tem ideia de que os
alemães bateram à porta do colégio pelo menos uma vez. Quando havia situações
mais delicadas, os refugiados já sabiam que deviam esconder-se em lugares
previamente combinados. E assim o faziam até os nazis irem embora. O reitor alertava-os
para eventuais riscos. O tio de Elio decidiu sair. Foram para casa de uma
mulher que vivia com duas filhas. Esconderam a verdadeira identidade, mas a
mulher suspeitou de que eram judeus. Perante a ameaça de serem entregues, pela
recompensa de 200 mil liras, saíram de novo e refugiaram-se em casa de um
coronel antifascista.
“Nunca mais vi ninguém, mas estou
muito grato” ao reitor, diz-nos agora Elio Cittone, recordando a experiência no
Colégio Português. Mas há um pormenor em que o relatório do padre Carreira e a
memória de Elio não coincidem. No documento, o reitor registou, na lista de
refugiados, os nomes de Isacco, Elio e Roberto Cittone, por esta ordem,
identificados como “judeus”. Mas Elio diz que apenas ele e o tio estiveram no
colégio. “O meu pai [Roberto] esteve noutro local.” Terão estado em momentos
diferentes? Ou o pai terá estado apenas alguns dias? Joaquim Carreira não terá
colocado o nome na lista sem razão, mas Elio não sabe explicar o facto.
Daniela Cittone, filha de Isacco,
conta-nos que nasceu em 1946 e que o pai morreu quando ela tinha dez anos. A
mãe relatava, mais tarde, que o pai e outros familiares tinham estado em Roma
refugiados em casas religiosas, mas não sabe pormenores. “A mãe dizia que
faltava comida e que eles tinham medo que os alemães aparecessem, não me
recordo de mais.”
Mussolini estava no poder. Em
Junho de 1940, a Itália entra na II Guerra Mundial e invade o Sul de França. Em
Setembro, invade o Egipto sob mandato britânico e, no final desse mês, assina
com a Alemanha e o Japão o Pacto Tripartido. Em Outubro, a Itália invade a
Grécia.
A ocupação de Roma pelos alemães,
concretizada entre 9 e 11 de Setembro de 1943, como resposta à chegada dos Aliados
a Itália, sucedeu a um “ligeiro bombardeamento de artilharia”. O episódio
deixou Joaquim Carreira com “alguma apreensão pela segurança das pessoas”.
Nessa altura, as condições de vida eram ainda “quase normais”, escreve ele no
relatório.
Nos primeiros dois meses não houve
grandes mudanças. Mas elas começaram a sentir-se com a chegada dos refugiados a
Roma. Estes vão afluindo ao colégio, depois de os Aliados terem ocupado zonas
da Itália. Na cidade, começa a notar-se a rarefacção e posterior suspensão
completa de meios de transporte, com a promulgação de várias ordens de polícia,
o início da requisição de pessoas para trabalhar e a “caça aos hebreus”, como
escreve o padre Carreira.
Foi neste contexto que as casas
religiosas foram procuradas como abrigo, incluindo de judeus. Mais tarde, já na
década de 1960, o papel do Papa Pio XII (1939-1958) durante a II Guerra será
objecto de polémica, com a União Soviética e a Alemanha Democrática (comunista)
a criticá-lo pela suposta passividade perante o Holocausto. Hoje, no entanto,
há cada vez mais elementos a confirmar que o próprio Papa terá dado instruções
para que judeus e outros perseguidos fossem acolhidos em casas religiosas e no
próprio Vaticano.
Carlos Azevedo também considera
que a história deste padre português pode ajudar a fazer mais luz sobre a acção
do Vaticano durante esta época. “Trata-se de mais uma história para completar o
quadro da protecção concreta dos judeus perseguidos por parte de instituições
da Igreja, O julgamento por vezes precipitado precisa desta investigação e
constitui um serviço à verdade apresentar a um vasto público um olhar mais
pleno”, defende, em declarações à revista 2.
Colocado perante as situações
concretas que lhe batem à porta, Joaquim Carreira assume como suas as
orientações do Vaticano: “A hospitalidade que está na base dos princípios da
caridade cristã e a exemplo de todas as comunidades religiosas de Roma, achei
que a devia oferecer a pessoas perseguidas, procuradas ou em perigo”, escreve.
“Concedi asilo e hospitalidade no colégio a pessoas que eram perseguidas na base
de leis injustas e desumanas.” Uma decisão que o levou a tomar um “maior
contacto com as misérias, as dores e as tragédias consequência da guerra”.
O Colégio Pontifício Português
estava bem situado: no n.º 12 da via Banco di Santo Spirito, no centro
histórico de Roma, no palacete Alberini-Senni (que ainda existe), como se lê na
monografia sobre o CPP, da autoria do padre Arnaldo Pinto Cardoso. Com um pátio
interior, as traseiras da casa estavam voltadas para a via dei Coronari, uma
rua de antiquários que termina junto da Piazza Navona.
O edifício do antigo Colégio Pontifício Português,
de Roma, na actualidade
O judeu Elio Cittone chegou à
porta do colégio, com o tio, Isacco Cittone, em Outubro de 1943. “Vivíamos em
Milão, tínhamos ido para Roma para fugir aos alemães.” O tio trabalhava com o
pai de Elio, Roberto, na venda de tapeçarias antigas. Um outro tio, o advogado
Alberto Luppolli, ajudou-os a procurar refúgio. Possivelmente, o tio Alberto
conheceria já Joaquim Carreira, admite Elio, que hoje vive perto de Milão. Mas
não sabe como é que o padre português apareceu na sua vida e na da sua família.
Do seu mês e meio no colégio,
recorda-se que havia umas 40 pessoas ali refugiadas. Os dias preenchiam-se de
poucos gestos: “De manhã fazíamos as camas e arrumávamos os quartos de modo a
não parecer que ali estava gente. Depois, passeávamos no corredor e comíamos.”
Também a comida não era muito variada: pequeno-almoço, arroz e massas. “Era o
que tínhamos.”
Era também o que o padre Carreira
conseguia arranjar, não sem dificuldade. No início, valeu o facto de as
provisões mais importantes estarem já feitas previamente. “As necessidades de
assegurar uma alimentação sã e, tanto quanto possível, abundante aos alunos,
para lhes garantir a boa saúde, constituiu um problema grave”, escreve o padre
português no relatório. O problema tinha de ser resolvido “quase dia a dia numa
cidade que, praticamente cercada durante sete meses, via cada dia mais a serem
consumidas as suas reservas alimentares”.
Entre Setembro de 1943 e Junho de
44, muitos preços aumentaram imenso. Em Abril, por exemplo, o preço da farinha
e outros produtos básicos aumentou para o dobro. Logo nos dois primeiros meses
da ocupação, o custo de vida subiu em média 20%, conta Joaquim Carreira. Em
Novembro, a fruta teve de ser abolida na ementa do colégio, por já não se
encontrar à venda, sendo substituída por “um pouco de marmelada”. Os
bombardeamentos contínuos das estradas de acesso a Roma e a completa paralisia
dos caminhos-de-ferro dificultavam o abastecimento da cidade.
Com o tempo, a alimentação
tornou-se ainda mais “monótona”. Mas Joaquim Carreira assegura que foi sempre
possível garantir uma “sopa abundante, de massa ou arroz”, bem como um prato
com “acompanhamento abundante de legumes ou verdura”. Havia carne uma ou duas
vezes por semana (às vezes três) e cozinhava-se duas massas iguais em cada dia.
“Talvez facto único entre os institutos religiosos de Roma, pude sempre
distribuir um copo de vinho em cada uma das refeições principais”, anota o
padre Carreira no relatório.
O padre também ia pessoalmente à
procura de comida: “Se não conhecesse tantos moleiros nos arredores de Roma, os
meus hóspedes teriam passado muita fome!” E sugeria pequenos truques: “O milho,
cozido em grão, valia por bom bife”, conta ele, citado na página do Santuário
de Fátima na Internet a propósito do centenário do seu nascimento, em 2008.
Francesco Santostefano, então
finalista de Medicina e depois médico cirurgião, recordará, em depoimento de 2
de Agosto de 1946, guardado nos arquivos do colégio, que, apesar do espectro da
fome, “nunca faltou nada na mesa” dos hóspedes clandestinos, graças ao
“sacrifício” do padre Carreira. E acrescentava que o reitor tudo fazia para que
os refugiados estivessem em segurança.
O advogado Antonio Priolo
agradeceu também ao padre Carreira o facto de ter escondido o seu filho, Luigi,
no Colégio Português. Socialista, presidente de câmara de Reggio Calabria entre
Setembro e Dezembro de 1943 (nomeado para o cargo pelas forças de libertação),
Antonio Priolo e a sua mulher Gina escreveram ao reitor em diferentes ocasiões.
Num dos cartões enviados, Priolo recorda que o apoio foi prestado “durante o
mais crítico e difícil período da vida em Roma”. Em outras duas cartas, em
Junho de 1947, mãe e filho agradecem a Joaquim Carreira o envio de um pequeno
jornal de Fátima.
guardado nos arquivos do Colégio Português
Apesar das dificuldades
quotidianas, Joaquim Carreira regista que os padres estudantes tiveram, tanto
quanto possível, uma vida normal: aulas, conferências, participação em algumas
solenidades na basílica de São Pedro, passeio periódico... Só não foi possível
ver “muitas belezas artísticas ou arqueológicas” porque muitos monumentos ou
museus estavam fechados. Dos 61 exames realizados pelos alunos (cursos
superiores e doutoramentos), apenas 9 foram aprovados com as duas
classificações mínimas; os restantes foram aprovados (13) cum laude (com louvor), (28) magna cum laude e (11) com a
máxima summa cum laude.
Os contactos entre os hóspedes e
os alunos do colégio foram “eficazes e instrutivos” do ponto de vista da
formação dos padres, escrevia ainda o padre Carreira. E a circunstância
extraordinária não perturbou de nenhum modo os “estudos e a tranquilidade” do
CPP nem as actividades estritamente religiosas da casa.
Mais ainda: o comportamento dos
alunos a estudar em Roma foi óptimo, sob o ponto de vista disciplinar e moral,
alegra-se o padre Carreira. E “exemplar pela piedade” e pelo “espírito de
caridade e compreensão demonstrado em relação aos hóspedes”.
No seu relatório, o padre Carreira
elogia os refugiados como pessoas “dignas de estima e de respeito” sob todos os
aspectos. Vincenzo Agado, partigiano e
ex-coronel de infantaria, que fala do colégio como um “oásis”, descreve os
refugiados como “uma pequena multidão de ambiciosos, de inquietos, de
apaixonados, de idealistas que viveram nove meses sob a protecção do Colégio
Português”. Ali, acrescenta, os refugiados (italianos e um padre polaco, que
também consta da lista) sentiram palpitar “o grande coração português”.
Num depoimento enviado ao padre
Carreira, em Maio de 1946, dois anos depois dos acontecimentos, o partisan escreve: “Éramos 42 (...)
estudantes universitários plenos de esperanças e de ideais numa nova Itália
democrática; soldados que tinham cumprido o seu dever e não podiam juntar-se à
própria família; homens políticos de pequena e grande dimensão que esperavam a
sua vez de comando; judeus atormentados pelas leis raciais...”
Também é de gratidão o testemunho
de Cesare Frugoni. Nascido em 1881, Frugoni era já então um clínico
reputadíssimo e director da Clínica Médica Geral da Universidade de Roma. Era
também o médico pessoal de artistas e políticos conhecidos (e adversários entre
si, em alguns casos). Entre os seus doentes, estavam Guilherme Marconi (que
morrera em 1937), o maestro Arturo Toscanini, o líder fascista Benito Mussolini
e Palmiro Togliatti, dirigente histórico dos comunistas italianos. Já quase no
final da sua vida, aos 84 anos, Frugoni casou-se com a meio-soprano Giuletta
Simionato, que morreu em 2010.
As suas relações com essas
personalidades e o seu pioneirismo em várias áreas médicas são recordados pelo
próprio no livro Ricordi i incontri (ed.
Mondadori, 1974). Com o padre Carreira, Frugoni correspondeu-se durante vários
anos. Pelo menos pelo Natal, o médico enviava uma carta ao padre português.
“Recordo sempre a grande cortesia
[e] amabilidade com que fui acolhido por si e o sentido de tranquilidade que me
veio da sua solidariedade espiritual e da ajuda [de todos]”, escreveu em
Dezembro de 1949. Há cartas de Frugoni que não estão datadas, mas o médico
escreveu pelo menos entre 1944 e 1952. Numa delas, usa também a expressão “oásis”
para se referir ao colégio: um “oásis de serena espiritualidade, de alta
intelectualidade e de afectuosa hospitalidade”. Nele “toda a vida decorria num
ritmo ordenado e tranquilo como se a fúria que agita o mundo e o eco das
tragédias que atormentam a humanidade se esvanecessem e parassem às portas do
Colégio Português”.
Médico também, e reitor da
Universidade de Roma, Giuseppe Caronìa (1884-1977) era um dos dirigentes do
Partido Popular (PP) que, depois da guerra, daria origem à Democracia Cristã
(DC) italiana. É dele uma descrição do quotidiano no colégio, na autobiografia
póstuma, intitulada Con Sturzo e con De
Gasperi – Uno scienziato nella politica (ed. 5 lune, 1979) – o título alude
aos líderes históricos do PP e da DC italiana, Luigi Sturzo e Alcide de
Gasperi.
“Os dias eram longos. Passava-se o
tempo entre a capela, a sala de almoço, algumas breves escapadelas ao terraço e
na leitura”, escreve Caronìa. O médico tinha, ele próprio, ajudado a esconder
vários judeus e outros perseguidos. Num depoimento guardado na documentação do
colégio, Caronìa conta que, por dirigir a Clínica das Doenças Infecciosas da
Universidade, conseguiu ocultar no hospital “mais de uma centena de refugiados –
judeus, funcionários recalcitrantes, jovens refractários ao recrutamento
forçado, militares insubmissos, guerrilheiros, etc. – a título de contagiados
por doenças graves".
Mais do que isso: o automóvel e o
consultório permitiram-lhe “servir de agente de ligação entre os membros do
Comité de Libertação Nacional” e hospedar dirigentes dos grupos de resistência.
Foi na sequência de um relatório
sobre essas actividades subversivas que um polícia amigo avisou Caronìa,
aconselhando-o a esconder-se. A 26 de Maio, um telefonema confirmou que a detenção
podia estar muito próxima. “Tranquilamente fui à clínica”, conta na carta guardada
no arquivo do colégio. “Dei as instruções para o caso de ausência eventual.
Voltei a casa e pus minha mulher ao corrente de tudo.”
O médico foi depois à residência
do embaixador de Portugal junto da Santa Sé, António Faria Carneiro Pacheco, de
quem era amigo. Em 1950, numa entrevista a’O
Jornal de São Paulo conta a mesma versão. Mas na sua autobiografia,
publicada postumamente em 1979, Caronìa conta o episódio referindo que se
encontrou com o embaixador Nunes da Silva, que era o representante de Portugal
junto do Estado italiano e de quem também seria próximo.
Da casa de Carneiro Pacheco (ou de
Nunes da Silva, versão que parece menos provável, por ser mais tardia), Caronìa
terá seguido para o Colégio Português, onde o “acolheram fraternalmente os
braços amigos do óptimo reitor” e encontrou “uns cinquenta” refugiados, entre
os quais o seu colega Frugoni. “Era o dia 26 de Maio [de 1944]. Sentia-se soar
os canhões entre Velletri e Valmontone”, escreve na autobiografia, referindo-se
a duas localidades a sul de Roma, a cerca de 20 quilómetros de distância.
Angelo Venturelli, outro refugiado
protegido pelo padre português, movimentava-se também na política italiana.
Nascido em Gussago, em Brescia (norte), em Agosto de 1889, numa família
tradicionalmente católica, o contabilista e empresário ligou-se ao Partido
Socialista Italiano (PSI) logo depois da I Guerra Mundial. Já na qualidade de
militante socialista, recebeu em sua casa o deputado Tito Zaniboni, poucos dias
antes do atentado (frustrado) que este protagonizaria contra Mussolini, a 4 de
Novembro de 1925.
De acordo com uma nota biográfica
que ele próprio escreveu numa folha, cedida à revista 2 pelo bisneto,
Giovanni Cherubini, Angelo Venturelli “viajou muito por todo o mundo”. De Sófia
(Bulgária), guardou “uma recordação inesquecível de monsenhor [Angelo] Roncalli,
mais tarde Papa João XXIII”. A partir de Julho de 1943, participou, em nome do
PSI, em reuniões de dirigentes de partidos antifascistas. E organizou, com a
ajuda do advogado Emilio Bonomelli, um encontro entre o líder histórico do PSI,
Pietro Nenni, e monsenhor Giovanni Battista Montini, então substituto na
Secretaria de Estado do Vaticano e futuro Papa Paulo VI. Na mesma nota,
Venturelli refere também o seu refúgio em instituições religiosas durante os
anos da guerra.
Sobre o quotidiano no abrigo
português fala ainda um outro testemunho, manuscrito, guardado nos arquivos do
colégio. Domenico Vitiello esteve refugiado com o seu irmão, Franco, entre 5 de
Outubro e 23 de Dezembro de 1943 – o pai, Fortunato, oficial da Marinha,
juntou-se a eles “mais tarde”.
“Foi colocado um pequeno quarto à
disposição de cada refugiado”, onde havia móveis e água corrente, conta
Domenico. Uma semana depois, uma nova sala para duche foi instalada. O reitor
estabelecera algumas normas de vida e prudência: colocou à disposição dos
refugiados “toda a biblioteca”, o rádio e os “compridos e largos corredores”
para passear, desde que não se chegassem às janelas. Um dos alunos iria
ensinar, a quem quisesse, a “sonante língua de Camões”. Também estava preparado
um esconderijo para usar in extremis, se
aparecessem os fascistas ou os alemães.
Domenico Vitiello confirma que o
número de refugiados foi crescendo com “professores, estudiosos, comerciantes,
militares, estudantes, judeus”. Isso obrigou a improvisar um segundo abrigo de
emergência, mostrando o reitor dotes de arquitecto, diz ainda o texto. A
segurança do esconderijo foi posta à prova várias vezes, conta Vitiello, mas
todos puderam experimentar o espírito de “altruísmo” do padre Carreira, que “desafiou
as ferozes leis de guerra alemãs e fascistas” para ajudar os que estavam em
perigo.
“Os dias decorriam com uma
regularidade monótona”, descreve Domenico, repetindo o que Caronìa diria mais
tarde na sua autobiografia. Ler e estudar nos quartos ou na biblioteca, escutar
rádio para depois informar os restantes, conversar com os padres-alunos, eram
os passatempos possíveis.
Quando podiam ir ao terraço, os
fugidos assistiam a “terríveis duelos entre a aviação aliada e a defesa
antiaérea” nazi-fascista, que muitas vezes acabava de forma “trágica” para
esta. De vez em quando, algum refugiado recebia a visita de familiares, sempre
sujeita a medidas de precaução.
Domenico Vitiello confirma que,
antes da sua saída, a 23 de Dezembro, os nazis tinham aumentado as perseguições
mesmo em casas religiosas. Nesse dia, o próprio reitor reuniu os refugiados
colocando-lhes a possibilidade de ficarem ou saírem. E a maior parte saiu,
nesse preciso dia, pelo terraço e, através do telhado, para um prédio vizinho.
Mas outros permaneceram até Junho de 1944.
Vitiello diz que, no dia da sua
chegada, já estavam na casa dois funcionários do Ministério dos Negócios
Estrangeiros – os irmãos Francesco e Marcello Cavaletti. No Diário da Manhã (jornal oficioso do
Estado Novo português), de 31 de Maio de 1946, Dutra Faria, enviado especial a
Roma, contava uma conversa com o então assessor de imprensa do ministério
italiano, Francesco Cavaletti (o irmão era diplomata).
Sentindo-se ameaçados, o assessor
diz que se refugiou com o irmão no Colégio Português, onde já havia outras
pessoas, entre as quais “um oficial de marinha, um advogado e alguns judeus”. A
roupa de cada um era distribuída pelos quartos dos padres. Se os alemães
entrassem, concluiriam “que os padres portugueses, além das suas batinas de
eclesiásticos, possuíam um guarda-roupa variado (...) Os padres arriscavam-se a
muito – e sabiam-no”.
Um dia, conta, os alemães fecharam
as duas extremidades da rua e entraram nas casas à procura de judeus. Os
refugiados, acompanhados pelo padre Carreira, sobem ao terraço – onde se
deparam com desconhecidos, também eles fugitivos que tinham entrado às
escondidas, pelo telhado, à procura de um abrigo. Entretanto, assistem à cena de
uma mulher que, desesperada, se atira de uma janela para a rua, tendo morte
imediata. “Os alemães encolhem os ombros... Uma filha de Israel a menos”,
comenta ele na reportagem citada. Francesco Cavaletti esteve 20 dias refugiado
no Colégio Português, saindo quando outros – “militantes socialistas, judeus,
carabineiros desertores” – batiam à porta.
Mario Maria Jacopetti, professor
de engenharia na Universidade de Nápoles, gostava de brincar apresentando-se
como “ex-aluno do Colégio Português”, porque foi um dos que mais tempo (sete
meses) estiveram na casa, da qual conservara grandes “laços de amizade com os
padres”. Num depoimento escrito ainda em 1944, Jacopetti falava do “afectuoso
sentimento, misto de reconhecimento, interesse e orgulho que se nutre para com
a instituição a que se pertenceu”.
Nascido em 1908, o mesmo ano de
Joaquim Carreira, Jacopetti morreu num acidente automóvel, em 1963, com quase
51 anos. Antes, perdera mulher e filhas num bombardeamento durante a guerra.
Hoje, Mario M. Jacopetti dá nome a um prémio do Rotary Club de Nápoles, que o
homenageia e distingue jovens engenheiros na área da engenharia industrial,
química, electroquímica e electrotécnica.
Gaetano La Gioia, do Rotary de
Nápoles, diz à revista 2 que Jacopetti foi presidente do clube entre
1960 e 1962. Apesar de ter sido aluno na Universidade de Nápoles e de ter
pesquisado a vida de Jacopetti, La Gioia desconhecia a passagem do engenheiro
por Roma. Mas o depoimento de Jacopetti guardado nos arquivos do Colégio
Português confirma que se trata do professor.
Durante os meses em que permaneceu
no colégio, Jacopetti teve tempo de apreciar as características dos padres e
dos refugiados. O que lhe permitiu compor, em Dezembro de 1943, um poema em 64
oitavas para contar o quotidiano daqueles tempos difíceis: “Irei, pois, falar
da bondade dos corações/ dos padres com quem vivemos lado a lado; e de todos
quantos no Colégio Português/ nos trataram com paciência e cortesia.”
No longo poema, traduzido pelo
padre João Mónico na biografia do tio, Jacopetti fala dos que foram acolhidos “pelo
humano reitor do Colégio Lusitano”, da boa comida mas também do “difícil
levantar logo pela alba”. E conta que o padre Carreira, “dotado de amor pela
física”, quis comprar uma máquina de barbear, mas “apareceu um dia com o rosto
muito vermelho”.
O poema dedica ainda estrofes aos
padres que ali estudavam, entre os quais Domingos de Pinho Brandão, que
chegaria a ser bispo auxiliar do Porto. Era ele que ensinava português aos
refugiados, aos quais são dedicadas as últimas estrofes. Pelo meio, descreve as
formas de passar o tempo: arrumação de quartos, missas e orações na capela,
leituras, rádio, conversas, discussões sobre os avanços ou recuos dos Aliados,
passeios nos corredores, jogos de cartas - entre os quais a “sueca”, referida
como jogo popular em Portugal.
Nascido a 8 de Setembro de 1908 no
Souto de Cima, freguesia da Caranguejeira, perto de Leiria, Joaquim era o filho
do meio de Inácia e Joaquim Carreira, que tinham mais quatro filhas.
Em 1920, tinha Joaquim Carreira 12
anos, entrou para o seminário de Leiria. A mãe terá sido a grande responsável.
Maria da Conceição Primitivo, antiga costureira e cronista d’A Voz do Domingo, jornal católico da
diocese de Leiria-Fátima, tem agora 80 anos e recorda que Joaquim Carreira a
procurou precisamente por causa das crónicas que ela escrevia. Foi no último
Verão de vida do padre, ainda a tempo de com ele se corresponder durante três
meses, antes da morte de Joaquim Carreira. Lembra um episódio contado pelo
próprio numa das cartas: miúdo ainda, chegou um dia a casa e foi ter com a mãe
à eira. “Assentei-me a seu lado e prosseguia o diálogo, quando o sino tocou as
ave-marias. Levantou-se e, cheia de paciência, rezou comigo. (...) Foi nessa
tarde quente, ao findar do dia, que na nossa eira a minha querida mãe me disse
assim: ‘Olha lá, filho, e se Nossa Senhora quisesse que tu fosses padre? Tu não
querias?’”
Na altura, Joaquim ficou “quieto e
calado”. Um ano depois do episódio, a mãe assistiu em Fátima ao chamado
“milagre do sol”, a 13 de Outubro de 1917. Em Outubro de 1918, Inácia Carreira
morreu. Dois anos depois, Joaquim entra no seminário. A devoção do padre
Carreira à Senhora de Fátima, que a mãe lhe incutira, estaria presente em toda
a sua vida.
Em 1925, Joaquim vai pela primeira
vez para Roma, para completar o curso de Teologia na Universidade Gregoriana.
Em 1931, é ordenado padre, regressando no Verão desse ano a Portugal. Colocado
em várias funções na diocese de Leiria, será como prefeito e professor no
seminário que a sua figura se começa a destacar: funda a emissora de rádio
Esfola Gatos e organiza um laboratório de Física e Química, cuja excelência na
cidade seria reconhecida.
“Fui aluno dele em Filosofia,
Matemática e Físico-Química”, recorda à revista 2 o padre Manuel da
Silva Gaspar, que era dez anos mais novo que Joaquim Carreira. “Teve grande
influência em mim, explicava muito bem e foi ele que criou o laboratório, onde
fizemos várias experiências.”
Manuel Gaspar, hoje com 94 anos,
descreve o seu professor e colega como alguém que gostava de “estar a par das
coisas da vida, simpático, afável” e uma pessoa com “muitos amigos”. O padre
Gaspar tem outra memória rara: viajou, com mais dois padres, numa pequena
avioneta pilotada por Joaquim Carreira. Sobrevoaram Coimbra, Leiria, Monte
Real, Fátima, Porto de Mós e Nazaré.
É que, antes dos acontecimentos em
Roma, Joaquim Carreira tinha já esse facto inédito no currículo: em Monte Real,
a 23 de Fevereiro de 1940, inscrevera-se no Aero Clube de Leiria (ACL) para
frequentar aulas de pilotagem de aviões, tornando-se no primeiro padre
português a tirar a licença de aviação.
Na página do ACL na Internet, pode
ler-se, num resumo histórico, que o aeroclube foi criado em 1938. Logo depois
foi construído um campo, um hangar e um posto meteorológico. “No ano seguinte
foi autorizada a Escola de Pilotagem. Foi adquirido um avião Taylorcraft com
motor de 55 HP, de matricula CS-ABR, onde foram ‘brevetados’ 11 pilotos no
primeiro curso, sendo instrutor o Sr. José da Cunha Carriço. Como curiosidade,
deste curso fez parte o 1.º padre português a ter o brevet.”
Reportagem sobre o “padre que se fez aviador”,
publicada em O Século Ilustrado
e reproduzida n’A República de 3 de Outubro de 1940
Joaquim Carreira viu a sua licença
de piloto aprovada a 24 de Abril de 1940, em Alverca. No dia seguinte fez o seu
primeiro voo – 55 minutos entre Alverca e Monte Real, como se pode ler na
biografia do sobrinho, João Mónico.
Nas viagens, o padre Carreira
vestia sempre o fato clerical – calças e casaco preto, cabeção, por vezes a
batina. Após o final da II Guerra Mundial, continuou a voar em Roma, como
recorda a irmã Maria Isilda, das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada
Conceição. “Ele ia muitas vezes para o aeroporto de Ciampino fazer treinos,
voar”, diz-nos.
Uma das pessoas que voou com ele
foi a irmã Maria do Rosário Mão Cheia, também das Franciscanas Hospitaleiras,
que hoje reside em Linda-a-Pastora (Oeiras). Sobrevoou Rieti, uma cidade entre
Roma e Assis. Joaquim Carreira contou-lhe vários pormenores sobre os refugiados
que acolheu no colégio. “Fez um grande esforço para conseguir alimentos e dizia
que chegou a andar em Roma debaixo de tiros à procura de comida”, conta ela à
revista 2.
O padre Carreira tinha gosto em
receber amigos e levá-los a passear por Roma ou Itália. Quando chegavam irmãs à
casa Madonna di Fatima, oferecia-lhes uma viagem a Assis e outros lugares
franciscanos – daí nasceria o livro Os
Lugares Santos Franciscanos, a par de outros sobre a história e a arte de
Roma ou Fátima. “Era muito bom em história, tinha um espírito muito
franciscano, era o melhor guia que podíamos ter”, conta a irmã Isilda. “Encantava-se
com o voo, falava disso com um prazer quase espiritual”, continua Maria Isilda,
que integrou a congregação quando tinha 25 anos, em 1967, e ainda vive na casa
Madonna di Fatima, onde monsenhor Carreira morreu, a 7 de Dezembro de 1981 –
fez há dias 31 anos [33 anos em 2014].
O prazer do voo estava também à
vista na reportagem d’O Século Ilustrado,
reproduzida n’A República de 3
de Outubro de 1940. A jornalista Fernanda Reis encontrara o padre Carreira no dia
do exame de piloto aviador: “O dr. Joaquim Carreira é um sacerdote novo e
cultíssimo. Fala docemente de um desejo antigo que a sua vontade tornou
realidade: voar. (...) Fiz-lhe, a certa altura, esta pergunta: – Como se
compreende que seja padre e aviador? Não há uma certa contradição entre duas
vidas tão díspares? – Não, não há contradição alguma. Nunca a Igreja foi
contrária à ciência.” Ao todo, escreve João Mónico na biografia do tio, Joaquim
Carreira fez, em Itália, pelo menos 200 horas de voo. A última vez que pilotou
um avião foi a 19 de Junho de 1973, sobrevoando Pádua durante hora e meia.
Nomeado monsenhor em 1950, Joaquim
Carreira desempenhou, a partir de 1952, o cargo de conselheiro eclesiástico da
embaixada portuguesa junto da Santa Sé. Desde 1958 passou a residir na casa
Madonna di Fatima. “Morava connosco e durante toda a semana animava o centro de
culto”, conta a irmã Maria Isilda. “Esta era uma zona nova, havia muitas
crianças que nós preparávamos para a primeira comunhão.” Na casa das irmãs,
além de celebrar missa e acompanhar as pessoas, monsenhor Carreira “dedicava-se
muito ao confessionário”. Mas, “sobretudo, acolhia muito bem toda a gente” e as
pessoas “procuravam-no para conversar e partilhar as suas dificuldades”.
Mosaico representando os acontecimentos de Fátima,
na capela da casa onde o padre Carreira viveu
durante os últimos anos da sua vida
A irmã Maria do Céu, também da
congregação das Franciscanas Hospitaleiras, conheceu igualmente Joaquim
Carreira. “Era uma pessoa de uma bondade extrema, sempre a sorrir, sempre
feliz, que encantava as pessoas com a sua maneira de ser”, diz-nos. A irmã
Isilda acrescenta que era um “grande devoto de Nossa Senhora de Fátima” (na
capela da casa onde ele viveu é possível ver ainda o mosaico que representa a
aparição de Fátima). “Ele contava pouco” do que tinham sido os tempos no
colégio, diz a irmã Isilda, que se lembra, apesar disso, de referências aos
refugiados. “Falava do sítio onde as pessoas estavam escondidas e da
alimentação. Dizia que enfrentou riscos para acolher as pessoas, mas sentia uma
grande alegria por tê-lo feito.”
Roma seria libertada da ocupação
nazi entre 3 e 4 de Junho de 1944. Mas o acontecimento não acabou com os
refugiados no Colégio Português. Em 1945-46, e durante algumas semanas, mais
seis pessoas terão estado escondidas no Colégio Português.
“Havia dois militares, um deles
coronel, que tinham estado na tropa fascista”, recorda à revista 2 o
padre Orlando de Freitas Morna, do Funchal, que esteve no Colégio Português
logo depois do final da ocupação de Roma. “Não tinham feito crimes”, esclarece
o padre Morna, por isso o reitor Carreira os recebeu.
D. Eurico Dias Nogueira,
ex-arcebispo de Braga, chegou a Roma para estudar a 31 de Dezembro de 1945.
Recorda-se, conta-nos agora, de ouvir as histórias dos refugiados de 1943-44,
mas conviveu igualmente com os dois militares fascistas. Em textos publicados
no Diário do Minho, entre Agosto
e Outubro de 2000, o antigo arcebispo dizia que um dos dois estaria condenado a
pena de morte. Mas acrescenta que também procuraram refúgio dois
luso-franceses, incorporados à força pelos nazis, e dois padres lituanos,
fugidos do seu país, ocupado pela então União Soviética.
No seu depoimento de 1946, o partisan Vincenzo Agado confirma
que, numa visita a Roma e ao colégio, notou que havia um pequeno grupo de
refugiados. Mas o ex-militar insistia na ideia de uma Itália reconciliada: também
os novos foragidos eram “párias da sociedade”.
Apesar da mudança de situação
política, as condições materiais mantiveram-se difíceis por algum tempo. No
relatório de 1944-45, Joaquim Carreira diz que apesar da rápida saída dos
refugiados depois da libertação de Roma, os problemas alimentares mantiveram-se
ainda, pela “carência de alguns géneros fundamentais” e pelo aumento brutal de
preços.
D. Eurico Nogueira descrevia nos
seus artigos que o maior problema dos primeiros meses “foi a deficiente
alimentação”. Conta mesmo que, tendo ido a uma consulta médica queixar-se de
insónias, o médico lhe respondeu que o que ele tinha era fome...
Logo no final da guerra, Joaquim
Carreira começara entretanto a diligenciar no sentido de comprar um terreno
para construir um edifício mais funcional para o Colégio Pontifício Português.
Não conseguindo, acabaria por deixar a reitoria em 1954, passando a dedicar-se
a várias actividades pastorais.
Durante os três últimos meses
antes de morrer, monsenhor Carreira escreveu a Conceição Primitivo 23 cartas a
falar da Igreja, da diocese, de memórias da mãe e da família. Numa delas,
dizia: “O cristão e muito especialmente o padre que não goste de dar, falta-lhe
alguma coisa de muito importante na sua vida (...). Quem dá parece-se com Deus.”
“Ele tinha uma necessidade
extraordinária de fazer o bem”, comenta Maria da Conceição. Joaquim Carreira
terá ainda, diz a antiga costureira, salvo mais gente. Contou-lhe o próprio que
colocara várias pessoas em outros sítios, além das que estiveram refugiadas no
CPP.
Nas suas cartas a Maria da
Conceição, monsenhor Carreira insurgia-se contra rumos da Igreja Católica
depois das reformas do Concílio Vaticano II (1962-65). Dizia que o Concílio não
tinha dito para os padres andarem “à paisana”, criticava o “espírito de
desobediência” entre os padres e não gostava que os clérigos se deixassem
tratar por tu. E escrevia: “À sombra da grande árvore que foi o Concílio
nasceram muitos cogumelos venenosos que era preciso arrancar. (...) não está
bem tanta relaxação, a que chamam actualidade, e tanto mundanismo entre nós,
ministros de Deus.” Em outra carta, lamentava: “Como é belo ver as pessoas
comungarem, mas é tão triste para uma alma de padre ver os confessionários
vazios.”
A 19 de Setembro de 1981, Joaquim
Carreira celebrara as bodas de ouro sacerdotais no Souto de Cima. A 23 de
Outubro, já em Lisboa e na véspera do regresso a Roma, intui que essa seria a
última vez que visitava o país. Numa das cartas a Maria da Conceição, conta
que, ao celebrar missa nessa manhã, “parece que Nossa Senhora [lhe] tinha dito
quase em surdina ao [seu] ouvido: Esta vai seu a tua última missa em Portugal.”
Sepultado inicialmente em Roma, o
padre Carreira seria trasladado para Portugal em 2001. Na altura, algumas
pequenas notícias na imprensa falavam de um padre que tinha salvo “centenas” ou
mesmo “milhares” de judeus e outros refugiados. Apenas pequenas pontas da
história eram conhecidas.
No regresso a Roma, talvez Joaquim
Carreira se tenha recordado dos últimos momentos da ocupação nazi: a 3 de Junho
de 1944, à noite, chegara a notícia de que os alemães estavam em retirada. Na
autobiografia, o médico Giuseppe Caronìa conta que os refugiados puderam fazer
o que até aí era proibido: passaram a noite à janela e no terraço que dava para
a ponte e o castelo Sant’Angelo. Três dias antes, a 31 de Maio, chegara à casa
um cesto de cerejas. Enviado pela mulher de Caronìa, era o sinal de que a pressão
dos alemães já diminuíra. “Naquele dia, ao pequeno almoço, as boas cerejas
foram distribuídas a todos os comensais e foi uma verdadeira festa.”
(Além das pessoas citadas no texto
e de vários apoios pontuais, agradece-se ainda a colaboração de Silvia Haia
Antonnucci, Renata Ergas, Riccardo Pacifici, Piero Terracina, Giovanni Caronìa,
José Travaços Santos, Jorge Lima Basto e padres José Caldas Esteves, Paulo José
Figueiró e Luciano Cristino.)
3 comentários:
Caro amigo António Marujo, li a tua peça e tenho de te dar os Parabéns com maiúscula. Uma peça de jornalismo investigativo de alta qualidade. Excelente. Um abraço desde Roma, Arlindo.
Caro António Marujo, parabéns por todo o excelente trabalho desenvolvido em torno deste caso. Um grande exemplo de investigação jornalística séria e rigorosa.
Parabéns! Sara
Embaixador de Portugal trava homenagem a Aristides de Sousa Mendes
http://expresso.sapo.pt/sociedade/2015-08-15-Embaixador-de-Portugal-trava-homenagem-a-Aristides--de-Sousa-Mendes
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