domingo, 9 de dezembro de 2012

Frei Bento Domingues: O Evangelho no meio da rua


 Já não recordo exactamente quando conheci Bento Domingues. Nem sei, sequer, se a primeira vez que o vi terá sido num colóquio sobre “As Faces do Medo”, em Lisboa, em Junho de 1987. Sei que, desse debate, e da intervenção do frei Bento – que falou sobre o medo e a religião – ficou-me a imagem de alguém profundo, bem-disposto, irónico, irreverente. Mesmo perante coisas sérias, mesmo com coisas sérias. Na altura, tenho ideia de ter ficado com uma impressão ambivalente: achava interessante que nos pudéssemos sorrir perante todas as coisas – mas talvez em privado. Já falar de Deus, do religioso, da Igreja, da consciência, dessas coisas sérias, daquele modo, assim com tanta liberdade e em público, talvez fosse um pouco demais…
Liberdade. Esta era, percebi-o mais tarde, uma das palavras-chave no dicionário de frei Bento. Há outras. Algumas delas estão, por exemplo, consagradas nos títulos dos livros que reúnem as crónicas que, a partir de 1992, frei Bento passou a escrever no Público aos domingos, tornando para muitos obrigatória a compra do jornal desse dia. Algumas dessas outras palavras: humanidade, Deus, cultura, paz. Ou ainda evangelho, democracia, política, participação, mulher, ecumenismo, alegria, beleza. Mas o léxico de frei Bento sintetiza-se num nome: Jesus Cristo.
Não terá sido por acaso que, numa entrevista que me concedeu para o Público, em 1999, ele dizia que a Igreja era o seu “espaço vital” e a sua “dificuldade”. E acrescentava que Jesus Cristo é “a paixão” da sua vida. No colóquio citado, aliás, uma das frases de frei Bento foi elucidativa: “Jesus veio para tirar o medo do mundo, mas introduz um novo medo, que é o medo de falhar no amor aos irmãos. (…) Face ao amor não há medo.”
Foi isso que aprendi a respeitar nele: alguém que preza essencialmente os valores pelos quais a sua consciência se move, sempre acima de uma instituição (seja a sua Ordem dos Pregadores, seja a Igreja Católica, seja o Estado, como tantas vezes aconteceu antes de 25 de Abril de 1974). E que essa consciência só obedece à fidelidade livremente procurada.
É essa atitude que leva frei Bento a ser constante na sua atitude fundamental: situar o evangelho no meio da rua. Por isso, nada do que é humano lhe é estranho. Basta ver os temas das suas crónicas para perceber a liberdade do olhar arguto, crítico para com os poderes e as injustiças, compreensivo para com as pessoas. Pelas páginas do jornal passaram todos os grandes temas do mundo e do cristianismo destas últimas duas décadas: dos fundamentalismos à ideia da “nova evangelização”, da globalização à pobreza, dos marginalizados da sociedade aos marginalizados da Igreja Católica, da teologia à política. A comoção atravessa também outros textos, como pudemos ler em evocações de pessoas tão diferentes como Sophia, Lourdes Pintasilgo ou Mário Figueirinhas, ou ainda outros nomes como Abel Varzim ou Joaquim Alves Correia. Nas suas crónicas, encontramos ainda a sugestão do que de novo se pensa na teologia contemporânea.
Nem só de crónicas, claro, se faz a pessoa e o pensamento de frei Bento Domingues. Pessoa de muitas lutas, autor de muitos textos, envolveu-se também no apoio aos presos políticos antes de 1974, integrando a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Por causa dessa sua intervenção, aliás, foi agraciado, pela Assembleia da República, com o Prémio dos Direitos Humanos, em Dezembro de 2010. E integrou também o Comité Português pró-Amnistia Geral no Brasil, o Conselho de Imprensa (1977-1980) e o Secretariado Nacional do Tribunal Cívico Humberto Delgado (1987).
São facetas de alguém que sempre viu no evangelho uma base para o empenhamento cívico pela justiça e pela paz. O mesmo que o levou, no âmbito estritamente eclesial, a participar em grupos católicos de oposição ao regime ditatorial fascista do Estado Novo: foi o caso do grupo Direito à Informação ou, com Francisco Sá Carneiro, dos cadernos Afrontamento, onde a divisa era: “Quando a desordem se torna ordem, a única atitude é afrontamento”.
Essas actividades valeram-lhe a expulsão do país, indo para Itália, de onde regressa de novo em Julho de 1964. É quando se empenha na criação do Instituto Superior de Estudos Teológicos, escola de formação teológica ligada a congregações religiosas. Desde o início, e até à sua extinção em 1975, em favor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, Bento Domingues lecciona no ISET.
A extinção da escola foi, para ele, “uma referência dolorosa que este tempo de involução teológica na Igreja não alivia”, dizia em 1990. Por isso se envolveria mais tarde, já na transição do século, na criação da licenciatura de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona. Para trás, tinham ficado estudos em Teologia feitos em Salamanca (Espanha), Toulouse (França) e Roma (Itália). A leccionação, além do ISET, incluiu escolas e cursos dos dominicanos, além de universidades e institutos em Moçambique, Angola, Peru, Chile e Colômbia.
A sua vocação, no entanto, realiza-se em plenitude através da escrita e das conferências. Homem da palavra, da pregação, tem centenas de textos dispersos por dezenas de publicações, naquele que é seguramente um dos poucos discursos teológicos que, em Portugal, aceita o confronto, na praça pública, com outras expressões do pensamento e da realidade.
Essa vocação traduz-se em experiências como a dos Cadernos de Estudos Africanos, que tornou acessíveis alguns dos nomes mais importantes das teologias de África, e na colecção Nova Consciência, do Círculo de Leitores. Esta foi, na época em que apareceu, na década de 1990, uma inovação em Portugal após décadas de deserto editorial neste âmbito, trazendo para o país grandes nomes e temas da teologia contemporânea.
Seria depois na aventura do Público, entretanto, que os meus caminhos se cruzariam mais sistematicamente com os de frei Bento. Desde o primeiro contacto senti a sua afabilidade, simplicidade e inteligência superiores, que só ajudavam o interlocutor a sentir-se mais próximo. Mais tarde, quando as primeiras crónicas foram reunidas em A Humanidade de Deus, fiz-lhe a entrevista referida (que será reeditada em 2011, num livro da Pedra Angular). Outros três livros lhe sucederiam: A Igreja e a Liberdade, As Religiões e a Cultura de Paz (2 vol.s, todos na Figueirinhas). Pelo meio, lembro-me que frei Bento foi capaz de se sentar em plena redacção do jornal para, durante quatro dias, acompanhar com os jornalistas a visita de João Paulo II a Portugal, em 2000, comentando o acontecimento numa crónica diária.
Antes, editara ainda, em 1988, entre dezenas de textos, A Religião dos Portugueses. Essa tinha sido já, pessoalmente, uma descoberta importante. Naquele pequeno livro, estavam condensadas outras preocupações importantes de frei Bento Domingues. Na obra, ele manifestava-se contra o facto de “a arte de ser católico português” ser tão pouco “aproblemática”, pondo em causa a “distracção com que os católicos vivem o cristianismo neste país”. E, para um frade com fama de “progressismo” – seja o que for que isso quer dizer, que a banalidade da linguagem não vem ao caso –, foi para mim surpreendente ver alguém que se preocupava em analisar um fenómeno como Fátima, para lá da religiosidade popular. Já nessa altura frei Bento pedia a publicação crítica dos documentos, que só começaria a ser feita vários anos depois. E urgia a necessidade de estudar o fenómeno de um ponto de vista antropológico e teológico.
Volto ao humor. N’O Nome da Rosa, Umberto Eco coloca Guilherme de Barskerville a dizer que o riso é próprio do homem e sinal da sua racionalidade e que o próprio Deus se exprime por argúcias. Em 1999, na entrevista citada, frei Bento dizia: “Autocrítica é flagelação, não acho que tenha piada. Eu exerço uma certa contenção nos textos porque o que me apetecia, muitas vezes, era rir de tudo e escrever textos de humor. Uma vez, na revista espanhola Vida Nueva, havia um cartoon de um Menino Jesus nas escadas de uma igreja a rir-se do que encontrou lá dentro. Em relação a tudo, sempre vivi assim. Vi-me sempre assim.”
Na mesma entrevista, frei Bento manifestava-se contra uma fé “sensaborona”, dizendo que o sagrado “sempre foi fascinante” e que “tudo devia ser vivido com uma grande dose de humor”. E contava uma história que com ele sucedera em Fátima: “Estava a pregar um retiro, fui a uma livraria e, de repente, dou pelas horas e já devia ter começado. Pus-me a correr a atravessar o santuário e, nisto, um guarda do santuário vem-me dizer: ‘Aqui não pode correr.’ E eu só me lembrei de responder: ‘Isto é promessa.’ E o homem largou-me. Eu tinha que ir depressa, nem havia muita gente e aquilo permitiu-me não aborrecer muito o senhor e não entrar numa discussão que não servia para nada.”
Desconstruir e desarmar. Essa é a capacidade de frei Bento. Das crónicas por ele escritas no Público, as dos primeiros quatro anos e meio estão reunidas em livros, como já referi. Seria chegada a hora de ver publicadas as restantes ou, pelo menos, poder ter acesso a uma antologia temática – alargada aos seus restantes textos. Por aí se poderia aquilatar a profundidade, riqueza e diversidade do pensamento que Bento Domingues já legou ao país, à cultura e à teologia cristã feita em Portugal. Se estão certas as minhas contas, frei Bento já escreveu mais de novecentas crónicas no jornal, desde 1992 e até ao início de 2011. Por isso, que outras mil crónicas floresçam!

(Texto incluído no livro “Frei Bento Domingues e o Incómodo da Coerência”, que será apresentado nesta segunda-feira, dia 10, na Universidade Lusófona, ao Campo Grande, em Lisboa)

2 comentários:

Mª da Conceição Moita disse...

Belíssimo texto sobre o Frei Bento.

maria disse...

Gostei muito deste texto. Estive há pouco tempo, e uma única vez, num evento onde estava o Frei Bento, e fiquei exactamente com a impressão de que as suas características principais são:"a sua afabilidade, simplicidade e inteligência".