Já não
recordo exactamente quando conheci Bento Domingues. Nem sei, sequer, se a
primeira vez que o vi terá sido num colóquio sobre “As Faces do Medo”, em
Lisboa, em Junho de 1987. Sei que, desse debate, e da intervenção do frei Bento
– que falou sobre o medo e a religião – ficou-me a imagem de alguém profundo,
bem-disposto, irónico, irreverente. Mesmo perante coisas sérias, mesmo com
coisas sérias. Na altura, tenho ideia de ter ficado com uma impressão
ambivalente: achava interessante que nos pudéssemos sorrir perante todas as
coisas – mas talvez em privado. Já falar de Deus, do religioso, da Igreja, da
consciência, dessas coisas sérias, daquele modo, assim com tanta liberdade e em
público, talvez fosse um pouco demais…
Liberdade.
Esta era, percebi-o mais tarde, uma das palavras-chave no dicionário de frei
Bento. Há outras. Algumas delas estão, por exemplo, consagradas nos títulos dos
livros que reúnem as crónicas que, a partir de 1992, frei Bento passou a
escrever no Público aos domingos,
tornando para muitos obrigatória a compra do jornal desse dia. Algumas dessas
outras palavras: humanidade, Deus, cultura, paz. Ou ainda evangelho,
democracia, política, participação, mulher, ecumenismo, alegria, beleza. Mas o
léxico de frei Bento sintetiza-se num nome: Jesus Cristo.
Não terá
sido por acaso que, numa entrevista que me concedeu para o Público, em 1999,
ele dizia que a Igreja era o seu “espaço vital” e a sua “dificuldade”. E
acrescentava que Jesus Cristo é “a paixão” da sua vida. No colóquio citado,
aliás, uma das frases de frei Bento foi elucidativa: “Jesus veio para tirar o
medo do mundo, mas introduz um novo medo, que é o medo de falhar no amor aos
irmãos. (…) Face ao amor não há medo.”
Foi isso que
aprendi a respeitar nele: alguém que preza essencialmente os valores pelos
quais a sua consciência se move, sempre acima de uma instituição (seja a sua
Ordem dos Pregadores, seja a Igreja Católica, seja o Estado, como tantas vezes
aconteceu antes de 25 de Abril de 1974). E que essa consciência só obedece à fidelidade
livremente procurada.
É essa
atitude que leva frei Bento a ser constante na sua atitude fundamental: situar
o evangelho no meio da rua. Por isso, nada do que é humano lhe é estranho.
Basta ver os temas das suas crónicas para perceber a liberdade do olhar arguto,
crítico para com os poderes e as injustiças, compreensivo para com as pessoas.
Pelas páginas do jornal passaram todos os grandes temas do mundo e do
cristianismo destas últimas duas décadas: dos fundamentalismos à ideia da “nova
evangelização”, da globalização à pobreza, dos marginalizados da sociedade aos
marginalizados da Igreja Católica, da teologia à política. A comoção atravessa
também outros textos, como pudemos ler em evocações de pessoas tão diferentes
como Sophia, Lourdes Pintasilgo ou Mário Figueirinhas, ou ainda outros nomes
como Abel Varzim ou Joaquim Alves Correia. Nas suas crónicas, encontramos ainda
a sugestão do que de novo se pensa na teologia contemporânea.
Nem só de
crónicas, claro, se faz a pessoa e o pensamento de frei Bento Domingues. Pessoa
de muitas lutas, autor de muitos textos, envolveu-se também no apoio aos presos
políticos antes de 1974, integrando a Comissão Nacional de Socorro aos Presos
Políticos. Por causa dessa sua intervenção, aliás, foi agraciado, pela Assembleia
da República, com o Prémio dos Direitos Humanos, em Dezembro de 2010. E
integrou também o Comité Português pró-Amnistia Geral no Brasil, o Conselho de
Imprensa (1977-1980) e o Secretariado Nacional do Tribunal Cívico Humberto
Delgado (1987).
São facetas
de alguém que sempre viu no evangelho uma base para o empenhamento cívico pela
justiça e pela paz. O mesmo que o levou, no âmbito estritamente eclesial, a
participar em grupos católicos de oposição ao regime ditatorial fascista do
Estado Novo: foi o caso do grupo Direito
à Informação ou, com Francisco Sá Carneiro, dos cadernos Afrontamento, onde a divisa era: “Quando
a desordem se torna ordem, a única atitude é afrontamento”.
Essas
actividades valeram-lhe a expulsão do país, indo para Itália, de onde regressa
de novo em Julho de 1964. É quando se empenha na criação do Instituto Superior
de Estudos Teológicos, escola de formação teológica ligada a congregações
religiosas. Desde o início, e até à sua extinção em 1975, em favor da Faculdade
de Teologia da Universidade Católica, Bento Domingues lecciona no ISET.
A extinção
da escola foi, para ele, “uma referência dolorosa que este tempo de involução
teológica na Igreja não alivia”, dizia em 1990. Por isso se envolveria mais
tarde, já na transição do século, na criação da licenciatura de Ciência das
Religiões na Universidade Lusófona. Para trás, tinham ficado estudos em
Teologia feitos em Salamanca (Espanha), Toulouse (França) e Roma (Itália). A
leccionação, além do ISET, incluiu escolas e cursos dos dominicanos, além de
universidades e institutos em Moçambique, Angola, Peru, Chile e Colômbia.
A sua
vocação, no entanto, realiza-se em plenitude através da escrita e das
conferências. Homem da palavra, da pregação, tem centenas de textos dispersos
por dezenas de publicações, naquele que é seguramente um dos poucos discursos
teológicos que, em Portugal, aceita o confronto, na praça pública, com outras
expressões do pensamento e da realidade.
Essa vocação
traduz-se em experiências como a dos Cadernos
de Estudos Africanos, que tornou acessíveis alguns dos nomes mais
importantes das teologias de África, e na colecção Nova Consciência, do Círculo de Leitores. Esta foi, na época em que
apareceu, na década de 1990, uma inovação em Portugal após décadas de deserto
editorial neste âmbito, trazendo para o país grandes nomes e temas da teologia
contemporânea.
Seria depois
na aventura do Público, entretanto,
que os meus caminhos se cruzariam mais sistematicamente com os de frei Bento.
Desde o primeiro contacto senti a sua afabilidade, simplicidade e inteligência
superiores, que só ajudavam o interlocutor a sentir-se mais próximo. Mais
tarde, quando as primeiras crónicas foram reunidas em A Humanidade de Deus, fiz-lhe a entrevista referida (que será
reeditada em 2011, num livro da Pedra Angular). Outros três livros lhe
sucederiam: A Igreja e a Liberdade, As Religiões e a Cultura de Paz (2
vol.s, todos na Figueirinhas). Pelo meio, lembro-me que frei Bento foi capaz de
se sentar em plena redacção do jornal para, durante quatro dias, acompanhar com
os jornalistas a visita de João Paulo II a Portugal, em 2000, comentando o
acontecimento numa crónica diária.
Antes,
editara ainda, em 1988, entre dezenas de textos, A Religião dos Portugueses. Essa tinha sido já, pessoalmente, uma
descoberta importante. Naquele pequeno livro, estavam condensadas outras
preocupações importantes de frei Bento Domingues. Na obra, ele manifestava-se
contra o facto de “a arte de ser católico português” ser tão pouco
“aproblemática”, pondo em causa a “distracção com que os católicos vivem o
cristianismo neste país”. E, para um frade com fama de “progressismo” – seja o
que for que isso quer dizer, que a banalidade da linguagem não vem ao caso –,
foi para mim surpreendente ver alguém que se preocupava em analisar um fenómeno
como Fátima, para lá da religiosidade popular. Já nessa altura frei Bento pedia
a publicação crítica dos documentos, que só começaria a ser feita vários anos
depois. E urgia a necessidade de estudar o fenómeno de um ponto de vista
antropológico e teológico.
Volto ao
humor. N’O Nome da Rosa, Umberto Eco
coloca Guilherme de Barskerville a dizer que o riso é próprio do homem e sinal
da sua racionalidade e que o próprio Deus se exprime por argúcias. Em 1999, na
entrevista citada, frei Bento dizia: “Autocrítica é flagelação, não acho que
tenha piada. Eu exerço uma certa contenção nos textos porque o que me apetecia,
muitas vezes, era rir de tudo e escrever textos de humor. Uma vez, na revista
espanhola Vida Nueva, havia um cartoon de um Menino Jesus nas escadas
de uma igreja a rir-se do que encontrou lá dentro. Em relação a tudo, sempre
vivi assim. Vi-me sempre assim.”
Na mesma
entrevista, frei Bento manifestava-se contra uma fé “sensaborona”, dizendo que
o sagrado “sempre foi fascinante” e que “tudo devia ser vivido com uma grande
dose de humor”. E contava uma história que com ele sucedera em Fátima: “Estava
a pregar um retiro, fui a uma livraria e, de repente, dou pelas horas e já
devia ter começado. Pus-me a correr a atravessar o santuário e, nisto, um
guarda do santuário vem-me dizer: ‘Aqui não pode correr.’ E eu só me lembrei de
responder: ‘Isto é promessa.’ E o homem largou-me. Eu tinha que ir depressa,
nem havia muita gente e aquilo permitiu-me não aborrecer muito o senhor e não
entrar numa discussão que não servia para nada.”
Desconstruir
e desarmar. Essa é a capacidade de frei Bento. Das crónicas por ele escritas no
Público, as dos primeiros quatro anos
e meio estão reunidas em livros, como já referi. Seria chegada a hora de ver
publicadas as restantes ou, pelo menos, poder ter acesso a uma antologia
temática – alargada aos seus restantes textos. Por aí se poderia aquilatar a
profundidade, riqueza e diversidade do pensamento que Bento Domingues já legou
ao país, à cultura e à teologia cristã feita em Portugal. Se estão certas as
minhas contas, frei Bento já escreveu mais de novecentas crónicas no jornal,
desde 1992 e até ao início de 2011. Por isso, que outras mil crónicas
floresçam!
(Texto
incluído no livro “Frei Bento Domingues e o Incómodo da Coerência”, que será
apresentado nesta segunda-feira, dia 10, na Universidade Lusófona, ao Campo
Grande, em Lisboa)
2 comentários:
Belíssimo texto sobre o Frei Bento.
Gostei muito deste texto. Estive há pouco tempo, e uma única vez, num evento onde estava o Frei Bento, e fiquei exactamente com a impressão de que as suas características principais são:"a sua afabilidade, simplicidade e inteligência".
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