Hans Küng é um dos nomes decisivos da teologia contemporânea, a par de Metz, Moltmann, Queiruga, Ratzinger e alguns mais. É, assim, fundamental conhecer o seu pensamento, para lá da espuma mediática, que o reduz tantas vezes a frases polémicas em entrevistas; seria uma tremenda injustiça ficar apenas com esse ruído, num homem que marcou já, decisivamente, a teologia contemporânea.
“Ser Cristão” e “Existe Deus?” são duas das suas obras
fundamentais. Mas, nos últimos anos, Küng marcou também o debate cultural com a
proposta de uma nova ética mundial: só haverá paz no mundo se houver paz e
diálogo entre as religiões; só haverá diálogo entre as religiões com padrões
éticos globais; e o planeta só sobrevirá se houver um “ethos” global, uma ética
para o mundo inteiro. A trilogia da qual “O Cristianismo” faz parte – que
inclui “Judaísmo” e “Islão” (este último publicado também em Portugal pelas
Edições 70) – está na base, pode dizer-se, daquele silogismo.
Com as três obras, Küng faz a exposição dos princípios doutrinais
e da concretização histórica dos três credos monoteístas. “O Cristianismo”, que
frei Bento Domingues considerou o acontecimento editorial de 2012, é uma
síntese de história, teologia, sociologia e filosofia, que nos leva à essência
– e à origem – da fé cristã: “Nada mais se nos depara a não ser uma pessoa. Em tal pessoa e só
nela, dispomos do centro permanente e sólido do cristianismo; partindo desta
pessoa e só dela poderemos responder à questão da essência do cristianismo.” (pág.
32) “O nome de Jesus, reconhecido ao longo dos séculos como o profeta e o
enviado de Deus (...) ele é o tema original que nunca se perdeu completamente
na tradição, na liturgia, na teologia e na piedade cristãs, mesmo nos piores
momentos de decadência” (p. 40-41).
Jesus, para Küng, é um judeu que se manifesta contra a violência, o legalismo e o ascetismo, e que não se afirma como condutor do povo como Moisés, como mestre moral à semelhança de Confúcio, como chefe de exército na esteira de Maomé ou como protótipo do iluminado como o foi Buda.
Jesus, para Küng, é um judeu que se manifesta contra a violência, o legalismo e o ascetismo, e que não se afirma como condutor do povo como Moisés, como mestre moral à semelhança de Confúcio, como chefe de exército na esteira de Maomé ou como protótipo do iluminado como o foi Buda.
A pergunta e a resposta que ficam após a leitura desta obra, guardou-as Hans Küng para o fim: “Como se explica que nem os imperadores pagãos, nem os ‘ditadores cristãos’, nem os papas ávidos de poder, nem os inquisidores sinistros, nem os bispos mundanos, nem os teólogos fanáticos hajam logrado extinguir este espírito?” Mistério do cristianismo: “O que é extraordinário é que o espírito do Nazareno conseguiu sempre romper, apesar das falhas das pessoas, das instituições e das constituições, desde que os fiéis já não se contentavam com palavras e se punham a segui-lo de uma maneira muito prática. A verdade do cristianismo não é apenas verdade para conhecer, mas verdade que faz viver.” (p. 732)
Pergunta e
resposta são, por assim dizer, o prefácio a um futuro livro. Para já, fica esta
exaustiva investigação do teólogo a quem o Vaticano retirou, há mais de duas
décadas, o título de teólogo católico. Aliás, talvez a Cúria Romana se tenha já
arrependido: não fosse essa decisão e Küng não teria criado um novo instituto
inter-religioso de investigação teológica, que tem produzido um trabalho
notável, de que este “O Cristianismo – Essência e História” é um dos mais
recentes exemplos.
O teólogo
alemão faz aqui um longo percurso por toda a história de vinte séculos de
cristianismo. O próprio autor diz que a obra pretende sintetizar duas
dimensões, “a da história e a da teologia sistemática”, mas não é exagerado
acrescentar que a “narrativa cronológica” e a “análise e discussão objectivas”
se cruzam com a sociologia, a história das ideias ou a filosofia. Num percurso
que resume todo ele o percurso individual de décadas de investigação do autor e
que toma cinco paradigmas fundamentais: paradigma júdeo-apocalítico do
cristianismo primitivo, ecuménico helenístico da antiguidade cristã, católico
romano medieval, protestante evangélico da Reforma, e paradigma da modernidade
– fé na razão e no progresso.
A obra e o
projecto em que ela se insere são ainda um passo mais na ideia central que Küng
tem acarinhado nos últimos anos: o serviço das religiões para a formulação de
uma nova ética mundial, baseada nos direitos humanos e na paz. Essa ideia é
servida no livro também por um conjunto de perguntas feitas, a propósito de
cada tema, às três religiões do monoteísmo. A viagem de “O Cristianismo”
leva-nos a parar na actualidade que já antecipa o futuro: o paradigma
ecuménico, que assuma as atitudes fundamentais ortodoxa (verdade transmitida
pela tradição de toda a Igreja), católica (continuidade da fé e da sua universalidade
no espaço), e reformadora (retorno constante ao Evangelho). Uma perspectiva que
assume o que de melhor guardou cada uma das principais tradições cristãs. Até
porque, como verifica o teólogo desde o início, o que hoje existe, “em lugar da
substância cristã”, é “o sistema romano, o fundamentalismo protestante ou o
tradicionalismo ortodoxo”, os quais não passam de “manifestações históricas do
cristianismo”.
Estas
expressões concretas – que “nem sempre existiram e hão-de desaparecer um dia”,
pois “não pertencem à essência da realidade cristã” (8) – são o ponto de
partida para a longa viagem de Küng pelos cinco paradigmas. Uma viagem que não
toma o cristianismo como um conjunto de histórias criminais, “tão insípidas
quanto os mais enfáticos ‘hinos à Igreja’”, mas se situa entre a sua imagem
ideal e a imagem hostil, sem ignorar os “inúmeros desvarios e um sem-fim de
desordens” (19).
Nessa
viagem, Küng fala do cristianismo do primeiro paradigma como uma Igreja
democrática, onde não há sacerdotes a oferecer sacrifícios, e que influencia o
próprio nascimento do islão. A transformação para o paradigma ecuménico
helenístico da antiguidade cristã leva à institucionalização mas assume a
pluralidade. O teólogo diz que está no Oriente europeu a forma de cristianismo
“mais próxima das origens” (268), uma ideia arrojada para quem admite logo a
seguir que essa mesma forma enfrenta os riscos do liturgismo e da Igreja de
Estado, afinal os dois maiores obstáculos a que as Igrejas Ortodoxas se
aproximem da modernidade. Aponta depois os limites do paradigma católico romano
medieval, que começa em Agostinho de Hipona e se acentua com a pretensão do
bispo de Roma à primazia entre os bispos.
Küng sossega
alguns bons espíritos católicos, propondo não a abolição do papado, mas a sua
reforma e propõe as exigências de Francisco de Assis como uma representação de
“um vigoroso questionamento do sistema romano centralizado”, válido ainda hoje.
Lutero inicia com a Reforma protestante um novo paradigma, mas é Calvino quem
faz do movimento uma potência mundial, que também já integra correntes
fundamentalistas. Finalmente, no paradigma da modernidade: fé na razão e no
progresso, o teólogo recorda as sucessivas querelas do cristianismo com as
revoluções sociais, políticas, tecnológicas, industriais e científicas.
Sem nunca deixar de se afirmar cristão, Hans Küng faz, nesta
viagem, um percurso fundamental – e indispensável – pela liberdade e contra a
ignorância ou os dogmatismos. Quem quiser aprofundar o saber deste teólogo incontornável,
beneficiando de décadas da investigação singular que Hans Küng produziu, só tem
que ler este livro. Imprescindível.
Título: O
Cristianismo – Essência e História
Autor:
Hans Küng
Tradutor: Gemeniano Cascais Franco
Edição:
Temas e Debates/Círculo de Leitores
838
páginas
(texto
a partir do artigo n’“O Mensageiro de Santo António” de Novembro de
2012 e de um texto no “Público/Mil Folhas” em Dezembro de 2002)
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