Contam os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas que “apareceu João, o Baptista, a pregar no deserto da Judeia”. Um homem desconcertante: alimenta-se de gafanhotos e mel silvestre, veste-se com uma pele, baptiza no rio Jordão, exorta à mudança de vida. Mas este homem não fica a pregar no deserto, ao contrário do que a expressão popular indicia. De tal modo incomoda os mais poderosos que o rei o manda degolar.
(Ilustração - Leonardo da Vinci: Santa Ana, a Virgem, o Menino e São João, c. 1498, Museu do Louvre, reproduzido em "Leonardo da Vinci", de Fernando Marias, ed. Estampa/Círculo de Leitores)
“Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas.”
(Profecia de Isaías 40, 3)
O cenário: um rio, deserto à volta. Um homem austero, muito austero. Multidões procuram-no, para o ouvir. Mas a mensagem deste profeta judeu não é meiga: João Baptista fala da necessidade de arrependimento, diz que quem tem uma túnica deve repartir com quem não tem nenhuma, pede aos soldados que não exerçam violência sobre ninguém, e aos colectores de impostos que não cometam injustiças. Veste-se mal, alimenta-se pior e acusa o rei de trair o irmão, tirando-lhe a mulher deste para casar.
Um homem que viveu há dois mil anos mas que “desconcerta o nosso tempo”, diz o padre João Resina Rodrigues (A Palavra no Tempo, ed. Multinova). Vivemos no supérfluo, na diplomacia, no compromisso. [João Baptista] era o homem do essencial, da verdade, dos caminhos rectilíneos. Não terá percebido toda a riqueza da alegria (nenhum dos santos é total), mas é, sem dúvida, um homem de Deus.”
João é um dos vários profetas que, no tempo de Jesus, agitam Israel. O seu estilo de vida e de pregação insere-o nos movimentos baptistas, que exortam as pessoas a mudar de vida, num tempo em que a fé judaica está em crise.
A ocupação romana, a espera messiânica que não se concretiza, a divisão em grupos e seitas (fariseus, saduceus, zelotas, essénios, levitas) espartilham o judaísmo. E a falta de líderes políticos ou religiosos reconhecidos – excepção para dois rabinos que se destacam, Hillel e Shamai – cria o ambiente propício para o aparecimento de todo o tipo de visionários.
O Baptista destaca-se dos restantes, até pelas consequências do que diz. Mas os seus discípulos percebem que ainda não é ele o Messias que aguardam: “Ele não era a luz, mas vinha para dar testemunho da luz”, escreverá outro João, o evangelista, cerca de sete décadas depois.
Nos evangelhos, João é apresentado como primo de Jesus. E é ele que lhe prepara o caminho. “Não confere o perdão dos pecados, mas o conhecimento da salvação que será dada no perdão dos pecados”, escreve o biblista francês Augustin George (Para Ler o Evangelho Segundo S. Lucas, ed. Difusora Bíblica). Mas, nota frei Lopes Morgado (Em minha memória, ed. Difusora Bíblica), quando vê Jesus, apesar de conhecer a sua “honestidade”, João “tem a liberdade e a lucidez de mandar interpelá-lo: ‘És tu aquele que há-de vir ou devemos esperar outro?’”.
“É o homem de Deus”, observa João Resina na obra citada. “Totalmente consagrado à sua tarefa, acima dos prazeres e das vaidades, das glórias e das quezílias. Vive no deserto, na austeridade total. Em todo o caso, em nada se assemelha àqueles ascetas que renunciaram a tudo porque em tudo viram pecado ou ocasião de pecado (…). João comporta-se como um homem livre, alheado das satisfações vulgares (…). Embora retirado do mundo, mostra uma grande experiência da vida. (…) Diz aos letrados que não se pode viver na mentira, pede aos soldados que não se sirvam da força para fazer exigências, manda a todos os que possuem que repartam com quem não tem.”
João e Jesus, dois percursos paralelos
João Baptista tem um percurso paralelo embora não totalmente coincidente com o de Jesus. Mesmo se os evangelhos o vêem como último profeta do Antigo Testamento, anunciador do Messias. Nas narrativas evangélicas, o Baptista começa por ter um nascimento miraculoso: se Jesus é encarnação de Deus sem intervenção humana, João nasce de pais já em idade avançada – e o seu pai é castigado pela falta de fé na mensagem do anjo, ficado mudo até ao dia do seu nascimento. João escolhe depois o deserto para viver e anunciar a sua mensagem. Jesus passa pelo deserto no início da sua vida pública ou quando precisa de ficar só. Ambos são escutados por multidões ávidas de alguém que indique caminhos de renovação. E ambos acabarão mortos de forma violenta, por causa do que dizem: João é degolado, Jesus é pregado numa cruz. O único encontro entre ambos narrado pelos evangelhos dá-se quando Jesus vai ter com João para que este o baptize nas águas do Jordão, tal como fazia às pessoas que o procuravam: “Eu é que tenho necessidade de ser baptizado por ti, e Tu vens a mim?”
Poema – A copa de Baltasar, de Eugénio de Castro
(A Júlio Dantas)
Os três Reis Magos tinham-se ido embora
Em dromedários calmos, ao luar...
Seus presentes de brilho singular,
Dispunha-os São José na manjedoura.
Um pastor cobiçoso nessa hora
Não se cansava ali de cobiçar
A áurea copa em que o negro Baltasar
Trouxera o claro incenso e a mirra loura.
Em Jesus, qu’rendo mostrar que o ouro
Nada mais vale que o mesquinho pó,
E que riquezas de esplendor imenso
Só se encontram das almas no tesouro,
Ao pegureiro atónito brandou:
– “Leva a copa, mas deixa a mirra e o incenso!”
(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público)
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