Na liturgia católica, começam hoje a rezar-se as “Antífonas do Ó”. Amanhã, a tradição assinala a festa da Expectação de Nossa Senhora, ou da Senhora do Ó. Tudo por causa de uma mulher que celebra a misericórdia de Deus e a opção pelos mais pobres.
(Ilustração: Miniatura do século XV, British Library, reproduzida em "Os Rostos de Maria na Bíblia", de Gianfranco Ravasi, ed. Paulus)
“Ó rebento da raiz de Jessé, sinal erguido diante dos povos: vinde libertar-nos, não tardeis mais.”
(Antífona de dia 19, da Liturgia das Horas)
Iniciam-se hoje, na liturgia católica, as “antífonas do Ó”. São pequenas orações que, nos nove dias até ao Natal, invocam Jesus Cristo como sabedoria de Deus, redentor, libertador e salvador da humanidade. As antífonas adensam, aumentam, a expectativa de um Deus que vai nascer. E celebram-no através de metáforas: “Ó sabedoria do altíssimo”, “Ó chefe da casa de Israel”, “Ó chave da casa de David”, “Ó sol nascente e sol da justiça.”
Cada metáfora regista um dos tons do Advento: a expectativa, a esperança, a alegria, a salvação aguardada. Dimensões que marcaram a história judaica (narrada no Antigo Testamento) e que marcam o cristianismo a partir do nascimento de Jesus.
Cristo é, para os cristãos, Deus que se faz homem e a celebração desse mistério – a encarnação divina sob forma humana – é preparada durante o tempo de Advento. “A Bíblia está repassada por um movimento de esperança, no sentido único dum Messias-Salvador, que veio na pessoa de Jesus de Nazaré, chamado o Cristo”, escreve frei Lopes Morgado, franciscano capuchinho (Roteiro de Natal, ed. Difusora Bíblica).
A expectativa é celebrada também sob forma física: tradicionalmente, o dia de amanhã marca, no calendário litúrgico católico, a Expectação de Nossa Senhora. Festa de origem espanhola, ela foi inspirada precisamente nas “Antífonas do Ó”, o que deu origem à designação popular da Senhora do Ó – que passou também a referir-se à gravidez de Maria de Nazaré.
Foi no século VI, no décimo concílio de Toledo, que se começou a falar desta festa, rapidamente alargada para regiões além-Pirenéus. A gravidez, tempo de esperanças, é também uma marca do Advento.
É na boca dessa Maria, já de esperanças, que o evangelista Lucas coloca um dos mais belos hinos dos textos dos evangelhos, o Magnificat. Maria sabe que sua prima Isabel também engravidara, para ser mãe de João Baptista e vai ter com ela.
Respondendo à saudação de Isabel, Maria adapta outros textos bíblicos do Antigo Testamento, recorda os mais importantes factos da história judaica e faz “também uma meditação lírica” sobre aquilo que lhe acaba de acontecer, escreve Jean-Paul Michaud (Maria nos Evangelhos, ed. Difusora Bíblica).
Surge o Magnificat, hino que celebra a misericórdia de Deus e a opção divina em favor dos mais pobres: “A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque pôs os olhos na humildade da sua serva. De hoje em diante, me chamarão bem-aventurada todas as gerações. O Todo-poderoso fez em mim maravilhas. Santo é o seu nome. A sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que o temem. Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias. Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua descendência, para sempre.” (Evangelho de Lucas 1, 46-56)
Alegra-te, Maria!
Avé-Maria ou Alegra-te Maria? A oração tradicional dedicada à figura da mãe de Jesus começa pela invocação Avé, da saudação em latim. Mas há quem discuta e diga que a expressão certa deveria ser “alegra-te”. Era o que propunha S. Lyonnet, já em 1939, como recorda Jean-Paul Michaud (Maria nos Evangelhos, ed. Difusora Bíblica). “Ausência de medo, alegria”, presença de Deus junto do seu povo, “tais são os temas essenciais” de vários textos bíblicos onde a expressão “chaire” hebraica aparece. A usar-se a alternativa “alegra-te” poderia conservar-se “o colorido judaico da narrativa” e, ao mesmo tempo, dar-lhe “a acentuação da alegria messiânica” que caracteriza os textos do Evangelho de Lucas com as narrativas do nascimento de Jesus. Apesar de haver quem defenda esta tese, há muitos outros exegetas a defender o “avé” tradicional.
Poema - Noite de Natal, de Pedro Homem de Mello
Como esse mar onde mal chega o rio,
Como esse pio onde mal sopra o vento,
Aqui me tens, negando o lume e o frio,
cego e surdo ao próprio pensamento.
Como esse mar onde mal chega o rio,
Como esse poço onde mal sopra o vento.
Não haveria quem sonhe à minha beira
E, ao menos, longe em longe me sorria?
Às vezes cuido que no terra inteira,
Já ninguém sente regressar o dia.
Não haveria quem sonhe à minha beira
E, ao menos, longe em longe me sorria?
Areia. Pó. Um charco e uma parede,
Tudo confundo: a sombra, o medo, a luz.
Nem lágrimas. Porquê? Morro de sede.
É esta a noite,
— E vai nascer Jesus
(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público)
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