terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Calendário de Advento (22) - A manjedoura e outras impertinências à volta de Jesus

A manjedoura, os pastores, os magos e os anjos. Elementos constitutivos do presépio, eles são sinais de uma vida que se iria revelar impertinente. As companhias de Jesus à refeição antecipam a forma como ele vai morrer e Deus torna-se visível.


(Ilustração: Giotto, Natividade)

“Um recém-nascido na palha de um estábulo (…) a própria criança um deus encarnado no mais fundo da pobre humanidade. (…) No Sinai, Iavé oculta-se aos olhos de Moisés numa nuvem. Agora esta nuvem dissipou-se e Deus encarnado num recém-nascido tornou-se visível.” (Michel Tournier, Gaspar, Belchior & Baltasar, ed. D. Quixote)


A refeição pode ser impertinente? Jesus morreu pela forma como comia, muitas vezes à mesma mesa dos que eram considerados pecadores, diz o biblista José Tolentino Mendonça. E o relato do seu nascimento, na versão de Lucas (2, 7), prenuncia já essa morte: “Completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura.”

A manjedoura era o lugar da comida dos animais e a referência ao comedouro inaugura “o campo semântico da refeição” no texto de Lucas. A maior parte do evangelho lucano, concretiza Tolentino Mendonça, decorre num contexto de refeição, que se torna uma “fonte de impertinência e de grande dramatismo” na vida de Jesus.

No relato do nascimento de Jesus, Lucas toma esse tom “quase bucólico do presépio – a presença do boi e do jumento, a manjedoura – como símbolo de uma certa aspereza”. A cena – a teologia de Lucas é essencialmente “visual e narrativa, não é conceptual” – não pretende dizer se Jesus foi ou não deitado numa manjedoura, mas tenta, antes, explicar o símbolo: “A reconciliação universal, o despojamento do próprio Deus.”

Lucas toma da referência a Salomão no livro da Sabedoria (7, 1-6) a forma cuidada – e humana – como o bebé nasce e é tratado: “Também eu sou um homem mortal como todos os homens,/ descendente do primeiro que foi formado da terra,/ e no ventre de uma mãe fui feito carne./
Durante dez meses fui ganhando corpo no sangue,/ a partir do sémen do homem e do prazer conjugal./ Também eu, ao nascer, respirei o ar comum/ e, como todos, caí sobre uma terra de sofrimento/ e, como todos, a primeira coisa que fiz foi chorar./ Criaram-me com mimos entre cueiros./ Nenhum rei começou de outro modo a sua existência,/ pois, para todos, é igual o começo e o fim da vida.” Salomão, como Jesus, como qualquer outra pessoa, nasceram para a vida com o primeiro choro.

Um outro paralelo com o Antigo Testamento é o texto do profeta Isaías (1, 3): “O boi conhece o seu dono, e o jumento, o estábulo do seu senhor.” A construção do presépio é quase “um libelo de acusação”, diz Tolentino Mendonça. Com a pergunta: “Seremos capazes de reconhecer Deus no estábulo?”

Se a manjedoura é símbolo de impertinência, os pastores não o são menos. No tempo em que Jesus nasce, eles eram socialmente proscritos, “por viverem à margem da prática religiosa” e por “trabalharem com animais impuros”, explica-se na Nova Bíblia dos Capuchinhos (ed. Difusora Bíblica). Por isso Lucas coloca os pastores, na sua narrativa, como primeiros destinatários da notícia do nascimento de Jesus.

Anunciadores do acontecimento, os anjos são mensageiros, sim, mas também uma forma de contornar a absoluta transcendência de Deus, própria do judaísmo. E os magos, ainda, símbolos de que a salvação vem para todos. E para cada um, como expressa a oração de Gaspar (Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares):

“Senhor, como estás longe e oculto e presente! Oiço apenas o ressoar do teu silêncio que avança para mim e a minha vida apenas toca a franja límpida da tua ausência. Fito em meu redor a solenidade das coisas como quem tenta decifrar uma escrita difícil. Mas és tu que me lês e me conheces. Faz que nada do meu ser se esconda. Chama à tua claridade a totalidade do meu ser para que o meu pensamento se torne transparente e possa escutar a palavra que desde sempre me dizes.”


Poema - Natal de 1972, de Jorge de Sena

Neste comércio festivo que há dois mil anos quase
perdura mal cobrindo remendadamente
o solstício do Inverno e os deuses sempre vivos
de cuja falsa morte o mundo paga em crimes,
como em vileza humana, o medo que escolheu
quando ao claror da aurora rósea e livre
de viver como os deuses e com eles
preferiu a lei e a ordem projectadas
na sombra em sombras da caverna obscura
e desejou o mal em preço de ser-se homem —
tudo o que em milhares de anos é tribal
congrega-se feliz num doce rebolar-se
da traição de que fomos contra a vida.
Tão vil que levou séculos a inventar
um deus assassinado para desculpá-la,
e fez dele o comércio das famílias
que cortam no peru as raivas de existirem,
beijando-se visguentas, comovidas,
tal como têm babado os pés dos deuses,
ah não eles mesmos mas imagens vãs
que não resplendam da grandeza humana.
Alguma vez teremos o dinheiro
para comprar de novo o Paraíso,
em vez de prendas para o sapatinho?
O Paraíso aqui — aquele que venderam
no começar do mundo. E que nos trocam
por outros no futuro ou nos aléns,
agora, aqui, aberto a todos, claro
— um sol sem fim nos bosques ou nas praias,
uma nudez sem morte nos corpos sem alma.

(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público
)

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