Desabafos de que a vertigem das compras de Natal nos consome. Uma alegria maior por se fazerem listas de presentes. Uma engrenagem consumista que envolve a todos. Pessoas que recriam o sentido da dádiva e dão novos sentidos e destinos à troca de presentes. Entre factos e sentimentos paradoxais ou mesmo contraditórios, as prendas de Natal são uma das principais notas da época.
(Ilustração: Bartolo di Fredi, Adoração dos Magos, in Legenda Áurea, ed. Civilização)
“Ao ver a estrela, sentiram imensa alegria; e, entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, adoraram-no; e, abrindo os cofres, ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra.” (Ev. de S. Mateus, 2, 10-11)
Papéis coloridos, laços, linhas de montagem para embrulhar presentes. Em qualquer loja onde se vá, cresce o número de pessoas, gasta-se mais tempo, aumentam os apelos ao consumo, oferecem-se promoções da época. O Natal passou a ser uma gigantesca máquina de produção de presentes?
Em casa, prepara-se um lugar próprio para ir colocando os presentes que vão chegando de familiares e amigos – junto do presépio, da árvore de Natal ou, em alguns casos, ainda da chaminé. Cresce o volume, diversifica-se o leque de cores. O Natal tomou conta de nós de forma avassaladora?
Manuela Silva, economista, nova presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica, alerta para algumas atitudes que o actual ritmo deveria impor: “Não somos meras peças de um qualquer engenho telecomandado. Somos seres humanos, isto é, somos dotados de um capital de inteligência, sensibilidade e liberdade”, escreve, no sítio internet da Fundação Betânia, a que preside.
“Somos capazes de ajuizar sobre a bondade dos nossos actos e ter consciência das suas implicações. Por isso, podemos – devemos – fazer escolhas. E estes são tempos de escolhas quanto à nossa relação com os bens materiais e com o consumo.”
Em Dezembro de 2005, o próprio Papa Bento XVI referiu-se ao tema, numa alocução de domingo: há “uma espécie de ‘poluição’ comercial” que coloca o verdadeiro espírito do Natal, afirmou. Além destes alertas, a antropologia pode também ajudar-nos a olhar o que se passa. Alfredo Teixeira, professor de Antropologia e Sociologia da Religião na Universidade Católica, tem investigado o tema do circuito da dádiva, uma questão “clássica e fundadora da antropologia”. “A grande pergunta é: o que se troca?”
A troca, responde o investigador, “parece estar baseada numa determinada forma de aliança”. Ou seja, “as pessoas dão presentes tendo em conta as relações que têm”, de parentesco, vizinhança ou amizade. Por vezes, há uma relação mais forte, outras nem tanto. Uma mudança em relação ao que se passava, quando se ofereciam presentes apenas a parentes ou vizinhos.
Na actual estrutura de sociabilidade, “damos presentes a cada vez mais pessoas”. Numa “visão primária”, podemos olhar para o fenómeno como uma consequência apenas da “cultura comercial que nos faz comprar cada vez mais coisas”. Mas “as pessoas não entrariam na sedução da compra se não tivesse mudado também as relações entre elas”.
Podemos admitir, entretanto, uma certa esquizofrenia do discurso – pessoal, social, mesmo de responsáveis da Igreja. Critica-se o consumo excessivo, mas não se propõem alternativas. “O discurso religioso tende a diabolizar a dimensão económica das coisas”, diz Alfredo Teixeira. Mas há uma economia de troca, defende o investigador, mesmo quando os filhos, depois de tanto receberem dos pais, passam a ser eles a dar, após um longo intervalo de tempo.
Por isso, diz, “ficar apenas a gritar contra o consumismo já não tem eficácia”. Deve, antes, reflectir-se “o que significa isto de trocar presentes”. A reorientação da dádiva – para instituições ou pessoas que precisam, reduzindo o número de presentes que se dão em família, por exemplo – “está no domínio da reinvenção dos gestos”. E aqui, afirma Alfredo Teixeira, “a mensagem cristã deveria também ajudar a ultrapassar fronteiras, passando da dádiva a quem nos é próximo para a dádiva ao estrangeiro, no sentido de quem está mais longe de nós”.
Um "suplemento de sentido"
Os magos a oferecerem presentes a Jesus ou S. Nicolau a ser generoso para com os mais pobres são duas das histórias que podem dar um “suplemento de sentido” ao gesto de trocar presentes na altura de Natal, explica Alfredo Teixeira, professor de Antropologia e Sociologia da Religião na Universidade Católica. As origens são “provavelmente anteriores ao Natal”, talvez mesmo “arcaicas”. Em muitas sociedades, reencaminha-se para a dádiva que beneficie os mais pobres. Alfredo Teixeira dá o exemplo dos ritos sacrificiais da peregrinação muçulmana a Meca, em que a carne é depois entregue aos mais pobres. “O dom é, em muitos casos, a forma de redistribuir, de recuperar para a sociedade franjas que continuariam na margem.” O dia em que se festejam os magos (6 de Janeiro) é o escolhido, em Espanha, para a troca de presentes. No Norte da Europa, a opção vai para 6 de Dezembro, a data em que se comemora S. Nicolau.
Poema - Cantos ao Divino, de Mário Beirão
Envolviam-se em mantas e rojavam
Os pesados bordões
Pelas ruelas do burgo desgastado
Por cismas e claustrais melancolias,
Sobressaltado
De evocações,
Oscilando no mar das ventanias,
Envolviam-se em mantas e cantavam...
Que gélidas, atrozes,
As noites desse Inverno! Entanto,
O bando
Dos cantadores, pelas ruelas divagando,
Prosseguia em seu canto!
Cálidas rescendências
Cresciam do florir das densas vozes,
Dessas vozes de tardas ressonâncias,
Extinguindo-se ao largo, nas distâncias,
Em hálitos de luz, em transcendentes,
Incertas refulgências
De auréolas de nascentes e poentes...
Era um coro que vinha, gemebundo,
Das almas, do profundo
De tudo o que há de humano,
Remontando-se a místicas Moradas,
Embebidas em sonho imorredoiro,
A cimos relumbrantes como brasas,
E, regressando, enfim, das extasiadas
Romagens do seu voo soberano,
Em um desmaio de oiro,
— Plenas de glória, as asas! —
Cavadores, ganhões, heróis da gleba,
Dos páramos de Beja,
Lá onde, sempre a errar, minha alma adeja,
Emergiam, fantásticos, da treva,
Erguendo cantos, como a erguer troféus...
Eram esses que enlaçam
A Terra aos Céus,
Nos coros que de assombros nos trespassam,
Longe de si — presentes só em Deus!
Cantavam ao Divino!
Cantavam, arroubados de Harmonia,
Àquela Nova Estrela que nascia;
Ao Deus-Menino,
Que, entalado nas vozes, lhes sorria!
(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público)
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