Por causa da crítica de Martinho de Dume à designação dos dias da semana com nomes de divindades pagãs, o português foi a única língua românica que passou a utilizar a expressão de “feira” (ou “feria”) para os mesmos. Foi um dos sucessos, entre outros, do abade de Dume e bispo de Braga.
[Ilustração: Martinho de Dume-miniatura do Códice Albeldensis, c. 976 (Biblioteca do Mosteiro de San Lorenzo de El Escorial, Madrid)]
“Esta é a verdadeira penitência: que o homem nunca mais cometa os erros que cometeu (…), pratique boas obras e dê esmola aos pobres, restaure as forças ao estranho cansado e tudo quanto gostaria que lhe fosse feito a ele por outro ele o faça a outrém.”
(Martinho de Dume, De Correctione Rusticorum)
Pacificador de povos, organizador da estrutura religiosa, evangelizador. Martinho de Dume, bispo de Braga no século VI, destacou-se no seu tempo como um grande pensador e um verdadeiro estratega da doutrinação dos cristãos e da expansão do cristianismo.
Martinho, contava-se, chegou à região vindo do Oriente, talvez da Panónia (actual Hungria). Tal era a convicção de historiadores até há pouco tempo. Mas essa lenda forjou-se na Gália, por causa da veneração de Martinho de Dume, que o calendário católico hoje celebra, ao seu homónimo de Tours, festejado a 11 de Novembro.
O que se sabe é que Martinho veio de longe, chegou à Galécia cerca do ano 550 e se tornou o primeiro abade do mosteiro de Dume, perto de Braga. Ali, o monge “inicia ou dá corpo a uma tradição monástica hispânica de características singulares”, escreve Aires A. Nascimento (Instrução Pastoral Sobre Superstições Populares – De Correctione Rusticorum, ed. Cosmos).
Essa especificidade do Noroeste peninsular católico acabará por originar, entre outras coisas, o rito bracarense. E traduz-se, na época de Martinho, em aspectos como os que “respeitam à observância de normas litúrgicas, à organização dirigida por um bispo-abade e a um programa de vida que combina reflexão com trabalho, cultivando o gosto pelo estudo aliado à meditação”.
Nesse tempo, a Galécia é uma encruzilhada de povos e reinos, após a queda do Império Romano. Em 558, a conversão do rei suevo Teodomiro, impulsionada por Martinho, tem como consequência a pacificação entre suevos, hispano-romanos (já cristianizados) e visigodos.
Esta conversão possibilita ainda a realização do I Concílio de Braga, em 561. A reunião, escreve Aires Nascimento, é “determinante na definição da ortodoxia e na reposição da unidade da fé”, até aí ameaçada pelo priscilianismo, movimento que defendia uma reforma interior da Igreja propondo um caminho de rigorismo, com uma carga anti-social profunda. No concílio já o abade de Dume se destaca. Oito anos depois, em 569, é escolhido naturalmente para suceder a Lucrécio como bispo de Braga e nesse papel organizará o II concílio, em 572.
A sua importância como doutrinador e organizador da Igreja evidencia-se claramente nas duas décadas seguintes: Martinho preocupa-se em combater as práticas pagãs e supersticiosas, ao mesmo tempo que propunha ao clero e aos fiéis normas de vida e regras de comportamento exemplares. “Cuidou sobretudo de uma pastoral directa, atenta às situações, interveniente e benevolente”, sintetiza Aires Nascimento.
É neste contexto que surge o De Correctione Rusticorum, ou Sermão Sobre a Correcção dos Rústicos. “Um verdadeiro programa de erros condenados e a corrigir”, observa a historiadora Ana Maria Jorge (História Religiosa de Portugal – vol. I, ed. Círculo de Leitores). No texto, Martinho critica vários dos costumes da religiosidade pagã vigentes na Galécia. Superstição, entende o bispo, confunde-se com obra demoníaca.
A par de obras de carácter moral, Martinho critica ainda o uso, que alguns persistiam em fazer, dos nomes de divindades pagãs para designar os dias da semana. O triunfo da designação de “feira” para os dias úteis, em língua portuguesa, tem, assim, a sua assinatura.
Um centro de investigação sobre igrejas cristãs antigas
Dume deverá tornar-se um dos principais centros de investigação de igrejas cristãs antigas, noticiou o Diário do Minho em 2005, citando o arqueólogo Luís Fontes, da Universidade do Minho. Desde 1987 ali há trabalhos de investigação, que permitiram colocar a descoberto uma galeria de 2500 metros quadrados que liga as diferentes secções de ruínas romanas (onde se destaca um balneário), e a basílica e mosteiro, onde Martinho foi abade durante uns nove anos, em meados do século VI. Em 2006, abriu o espaço museológico, que passou a expor também o sarcófago de Martinho de Dume (do século XI), que estava no Museu D. Diogo de Sousa, em Braga. Esta peça é considerada pelo arqueólogo como “a mais importante peça escultórica funerária da Alta Idade Média em Portugal”, pela “riqueza iconográfica” e “qualidade escultórica”. Dume foi, na época de Martinho, um importante centro de irradiação cultural na Península Ibérica. Ali foram traduzidas várias obras clássicas importantes.
Poema - Ao Menino Deus em metáfora de doce, de Jerónimo Baía
Quem quer fruta doce?
Mostre cá, que é isso?
E doce coberto,
E manjar Divino.
Vejamos o Doce,
E depois que o virmos,
Compraremos todo,
Se for todo rico.
Venha ao Portal logo,
Verá que não minto,
Pois de várias sortes
E doce Infinito.
Descubra, minha alma;
Mas ah! Que diviso
Envolto em mantilhas
Um Infante lindo.
Pois de que se admira
Quando este Menino
De Doce coberto
E Manjar Divino?
Diga o como é doce,
Que ignoro o prodígio;
Não sabe o mistério?
Ora vá ouvindo.
Muito antes de Santa Ana
Teve este Doce princípio,
Porque já do Salvador
Se davam muitos indícios.
Mas na Anunciada dizem
Que houve mais expresso aviso,
E logo na Encarnação
Se entrou por modo Divino.
Esteve pois na Esperança
Muitos tempos escondido,
Saiu da Madre de Deus,
Depois às Claras foi visto.
Fazem dele estimação
As Freiras com tal capricho,
Que apuram para este Doce
Todos os cinco sentidos.
Afirmam que no Calvário
Terá seu termo finito,
Sendo que no Sacramento
Há-de ter novo artificio.
Que seja doce este Infante
A razão o está pedindo,
Porque é certo que é Morgado,
Sendo Unigénito Filho.
Exposto ao rigor do tempo
Quando tirita nuzinho,
Um Caramelo parece
Pelo banco & pelo frio.
Tal Doce é, que porque farte
Ao pecador mais faminto,
Será de Pão com espécies
Substancial Doce Divino.
E Manjar tão soberano,
Regalo tão peregrino,
Que os espíritos levanta,
Tornando aos mortos vivos.
Tão delicioso bocado
Será de gosto infinito,
Manjar real verdadeiro,
Manjar branco parecido.
Que é manjar dos Anjos dizem
Talentos mui fidedignos,
Por ser pão-de-Ló, que aos Anjos
Foi em figura oferecido.
(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público)
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