(Ilustração: Ilda David' "S. João da Cruz - Poesias Completas", ed. Assírio & Alvim)
“Aonde te escondeste,/ Amado, e me deixaste soluçando?/ Como o cervo correste,/ Ferida me deixando;/ Tinhas partido, quando saí clamando.”
(S. João da Cruz, Poesias Completas, trad. José Bento, ed. Assírio & Alvim)
Preso, torturado pelos frades do convento onde chegou a estar detido, mais tarde excomungado, João da Cruz (1542-1591), reformador dos carmelitas, é uma das mais importantes figuras do catolicismo. Mas a sua dimensão de místico e poeta foi calejada no cativeiro de nove meses, no convento carmelita de Toledo.
Juan de Yepes (nome de baptismo) nasce em Fontiveros (próximo de Ávila, Espanha), numa família pobre. Depois da morte do pai, a família vai para Medina del Campo, em 1551. Juan tenta, sucessivamente, aprender ofícios num orfanato e trabalhar num hospital para pobres. Acaba a estudar humanidades, entre 1559 e 1563 no colégio dos Jesuítas.
Em 1564, Juan entra no convento de Medina del Campo dos carmelitas mitigados. A expressão designa os abrandamentos da regra que muitos carmelos tinham adoptado, à mistura com o relaxamento da fé. Títulos académicos vendidos ou oferecidos, tesourarias dos conventos reabastecidas “em parte através da exploração de ‘devoções’ populares próximas da magia” eram, entre outras, razões para que a primitiva regra já não servisse, diz Jean-Pie Lapierre (A Noite Obscura, ed. Estampa).
Frei Juan de San Matias, o nome que adopta na vida religiosa, vai estudar para Salamanca, sendo ordenado três anos depois. É nessa ocasião, com 25 anos, que encontra pela primeira vez madre Teresa de Jesus. A futura santa Teresa d’Ávila, reformadora do carmelo, tinha já mais de 50 anos e Juan confessa-lhe a sua insatisfação com o que vivia no carmelo. O seu objectivo era, então, entrar num convento de monges cartuxos.
O encontro muda, no entanto, o rumo da vida do frade. Teresa de Jesus vivia já com um pequeno grupo de carmelitas “descalças”, designação adoptada pelas reformadoras. Juan decide trabalhar com ela no sentido de renovar a regra carmelita. Abandona o hábito de mitigado e, em Janeiro de 1568, funda os carmelitas descalços, assinando pela primeira vez como João da Cruz.
Os obstáculos, as acusações e os conflitos de que é vítima sucedem-se. O clima adensa-se. Mitigados e descalços são peões de brega da política expansionista de Filipe II. Nove anos depois, a 2 de Dezembro de 1577, frei João é preso em Ávila, por homens armados que o levam, às escondidas, para o carmelo de Toledo.
Ali, recorda Jean-Pie Lapierre, o reformador é colocado num buraco com cerca de três metros de comprimento por dois de largura. Apenas sai para lhe darem uma refeição de pão e água, servida de joelhos, no chão. Come no meio de 80 irmãos – palavra desadequada, como se vê – que, em cada sexta-feira, lhe aplicam a disciplina (instrumento de correias que servia para a autoflagelação).
Deste degredo, do qual quase ninguém sabe o paradeiro, João foge a 15 de Agosto de 1578. Frei João contará que foi Nossa Senhora que a isso o incitou. E, para o fazer, tem a ajuda do novo carcereiro, o irmão João de Santa Maria, que nos últimos três meses, o vinha também fornecendo de papel e tinta.
Na fuga, João da Cruz leva consigo um caderno. Nele escrevera os seus poemas – entre os quais o Cântico espiritual, a Chama de amor viva e Noite escura. E, mesmo se a poesia de frei João não ocupa mais de 40 páginas, o poeta e tradutor José Bento não tem dúvida em colocar aqueles três entre os “mais belos poemas da língua espanhola e porventura de qualquer língua”.
A prosa e a poesia de João da Cruz inclui ainda mais de 20 cartas e oito textos (disponíveis nas Obras Completas, ed. Carmelo) três dos quais são comentários aos três poemas referidos.
João da Cruz morre a 14 de Dezembro de 1591, aos 49 anos, depois de fundar vários carmelos reformados. Nas Outras coplas a lo Divino, escreve: “A mais forte conquista/ na escuridão se fazia.”
Uma cela para João da Cruz
O norte-americano Bill Viola, um dos mais importantes realizadores contemporâneos, fez um Room for Saint-John of the Cross (1983), onde procura reconstruir a cela onde, durante nove meses, o poeta e místico espanhol esteve preso. Num texto publicado nos Cahiers du Cinéma (Janeiro de 1986), intitulado “A escultura do tempo”, Raymon Bellour descreve as imagens: uma mesa, um copo, um minúsculo monitor a cores e “uma voz que parece vinda chão [que] recita poemas em espanhol, coberto pelo rugido do vento”. A escolha do tema de João da Cruz destina-se a “exprimir o que tomou hoje o lugar de Deus”. “Na sua cela sem janela, pode pensar-se que S. João imaginava uma paisagem: tinha a imagem interior de uma percepção. [Viola] inspira-se para mergulhar na Noite Escura e aí encontrar Deus.” O realizador, que filma, e o espectador, que vê, “encontram-se sempre um pouco na pele de S. João da Cruz”, de quem trabalha essa “imagem-paisagem” interior.
Poema - Paisagem Verdadeira, de Edmundo de Bettencourt
O verde tenro e vivo, de folhagem,
presépio dos meus sonhos, em menino,
pôs-se de luto, a par com o meu destino,
cego-me a vê-lo imagem de miragem...
Quando, iludido, o busco na ramagem,
já com seus tons mais brandos não atino;
e nesta escuridão, só me ilumino
vendo-o compor-me interior paisagem:
paisagem d’outro verde, que de mim
sai alongado em foco para a terra
a procurar vencer-lhe a cerração,
e aonde num crepúsculo sem fim
tonta, a esperança, esvoaçando, erra
sobre torres d’encanto e de traição!
(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público)
1 comentário:
Estes textos do Advento são magníficos! Obrigada Lucy
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