sábado, 5 de dezembro de 2009

Calendário de Advento (4) - Marcos, jornalista inventor do evangelho e do segredo messiânico

Quando Jesus é preso, conta o evangelho de Marcos (14, 51), “um certo jovem, que o seguia envolto apenas num lençol, foi preso [também] mas, deixando o lençol, fugiu nu”. Os especialistas olham para esta figura como o próprio Marcos. Mais tarde, este seguirá Paulo e Barnabé nas duas primeiras viagens missionárias de Paulo. Na segunda, há uma violenta discussão entre Marcos e Paulo, acabando por se separar. Marcos vai para Roma, colaborando com Pedro na evangelização da capital do império. Aí, provavelmente, escreve o seu evangelho, onde mostra um Jesus “Filho de Deus” e profundamente humano. Um Jesus de contrastes, entre o carinhoso e o distante, que umas vezes pede segredo, e outras quer que divulguem tudo aquilo que faz. O evangelho onde qualquer pessoa, mesmo não-crente, “se sentirá melhor” retratada, diz a Nova Bíblia dos Capuchinhos. Reza a lenda que o seu corpo foi levado do Egipto para Veneza, no século IX. Razão para que a cidade dos doges construísse a esplendorosa basílica a ele dedicada.

(Ilustração: Cristo dando a bênção entre a Virgem e S. Marcos, mosaico do séc. XIII na Basílica de São Marcos, em Veneza)


É o mais antigo evangelho, escrito com a preocupação de falar de Jesus aos pagãos. Guarda um segredo que o seu autror, Marcos, vai desvelando aos poucos. Conciso, directo e colorido, tem um estilo que alguns já identificaram como de um jornalista preocupado em relatar factos.


Uma voz clama no deserto:‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas.
(Marcos 1, 3)

O texto escrito por Marcos é o mais antigo entre os quatro evangelhos que narram a vida de Jesus. A narração começa pelas palavras “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”. É a primeira vez que alguém usa a expressão para contar a “boa nova” (é esse o significado da palavra evangelho) de Jesus. Marcos é, assim, o inventr do evangelho como género literário.

Os investigadores acreditam que o texto terá sido escrito em Roma, entre os anos 64 e 70 (mais perto desta data), pouco antes da queda de Jerusalém sob a dominação romana. No seu evangelho, Marcos tem um estilo muito próprio: “É exímio na arte de contar: fá-lo com realismo e sentido do concreto, enriquece os relatos de pormenores e dá-lhes vida e cor”, escreve-se na introdução ao texto, na edição da Nova Bíblia dos Capuchinhos (ed. Difusora Bíblica).

Estas características levaram alguns a falar de um evangelho de jornalista – no estilo, pelo menos. A comparação peca por desajustada. Mas aparece porque o autor está interessado, essencialmente, em apresentar factos que transmitam o fundamental da mensagem de Jesus.

A secura ou aridez literária de Marcos levaram ao menosprezo pelo seu texto até final do século XIX. A descoberta de que este era o evangelho mais antigo levou nessa altura à sua reabilitação. Vários autores passam a considerá-lo “mais digno de crédito do que os outros evangelhos”, como escreve o biblista Jean Delorme (Para Ler o Evangelho Segundo S. Marcos, ed. Difusora Bíblica).

Um dos textos bíblicos mais lidos nas quatro semanas de Advento (pelo menos este ano, já que os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas são lidos alternadamente), Marcos é hoje valorizado mais por “despertar o interesse pela humanidade de Jesus”, explica Delorme.

Este é também o mais breve dos quatro evangelhos (16 capítulos, em vez dos 21 de João, 24 de Lucas e 28 de Mateus). É o texto “mais simples, directo e colorido, valorizando pormenores em apoio de uma fé sensível ao extraordinário”, escreve frei Lopes Morgado, franciscano capuchinho no número 7 da revista Stella).

O mais antigo evangelho. Um reflexo da que seria a “mais primitiva reflexão da Igreja acerca do acontecimento Cristo, que lhe deu origem”, lê-se na Nova Bíblia dos Capuchinhos. No caso de Marcos, a mensagem é dirigida sobretudo a cristãos oriundos de fora do judaísmo. Por isso o autor reocupa-se em explicar aos seus leitores, em pormenor, usos e costumes do judaísmo.

Também pela mesma razão, Marcos é o único a colocar a figura do centurião romano que está junto da cruz, quando Jesus morre, a fazer uma profissão de fé: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus.” A mesma, afinal, feita pelo próprio autor no início do texto. A mesma que Pedro faz, no capítulo 8 – “Tu és o Messias”, depois de Jesus perguntar aos mais próximos: “E vós, quem dizeis que Eu sou?”

A intencionalidade desta mensagem é o centro da mensagem que Marcos quer fazer passar. E a declaração repetida de Jesus como Filho de Deus, como o Messias aguardado pelos judeus, é também o segredo que o evangelho guarda, ao modo de suspense: “O Jesus de Marcos é enigmático”, escreve Jean Delorme. E é também objecto de sucessivas perguntas: “Quem é ele?”, “O que é isto?”; provoca o espanto: “Nunca vimos coisa assim”.


Poema - Ao nascimento de Nosso Senhor, de Frei Agostinho da Cruz

Tanta formosura
Nume estrebaria,
Jesus, e Maria?

Chove, venta e neva,
Congela-se o rio,
Meu Senhor ao frio
Com’os filhos d’Eva!
Pelo que releva
Numa estrebaria,
Jesus, e Maria?

Nasce a nova Luz,
Nasce a flor das flores,
Amor dos amores,
No berço e na cruz
Maria e Jesus?
Numa estrebaria,
Jesus, e Maria?

Desumana gente
Que não agasalha
A quem só na palha
Ficará contente.
Ai! Quão pobremente
Numa estrebaria,
Jesus, e Maria?

Fermoso Menino,
Meu Senhor eterno,
Por tempo de Inverno
Pobre peregrino;
O amor divino
Numa estrebaria,
Jesus, e Maria?

Por terras estranhas,
A vossa pousada
Tem o tempo armada
De teias de aranhas?
Nasce das entranhas
Jesus, e Maria
Numa estrebaria?

(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público
)

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