sábado, 5 de dezembro de 2009

Calendário de Advento (2) - Presépio: modelar a ternura de Deus

Só nas últimas décadas a recriação de artistas diferentes deu outras dimensões ao presépio. De comum a todas elas, o barro, a pedra ou a madeira modelam, como em Francisco, a ternura de Deus.

(Foto: Presépio das Irmãzinhas de Jesus)

Tu, Senhor, é que és o nosso pai. Nós somos a argila e Tu és o oleiro. Todos nós fomos modelados pelas tuas mãos.
(Isaías 64, 7)

Conta a história que o primeiro presépio foi um teatro, encenado por Francisco de Assis, em Greccio (Umbria, centro de Itália), na noite de Natal de 1223. Havia o ambiente de um monte, o povo, um boi e um jumento. E havia uma imagem de barro, a reconstituir o Menino. Conta a lenda que, quando Francisco pegou ao colo na imagem, esta sorriu.

Na Vida Primeira (in Fontes Franciscanas - I, ed. Franciscana), uma biografia do santo, Tomás de Celano escreve que Francisco “ficou radiante” com a representação da cena. “Lá estava a manjedoura com o feno e, junto dela, o boi e o jumento. Ali receberia honras a simplicidade, ali seria a vitória da pobreza, ali se aprenderia a lição melhor da humildade.”

O texto descreve o episódio num tom entre a realidade e o maravilhoso: “A noite resplandecia como o dia (...). A recriação do mistério dá a todos novos motivos para se rejubilarem. Erguem-se vozes na floresta e as rochas alcantiladas repercutem os hinos festivos. Os irmãos entoam os louvores do Senhor, e entre cânticos de júbilo fremente decorre toda a noite. O santo de Deus está de pé diante do presépio, desfeito em suspiros, trespassado de piedade, submerso em gozo inefável.”

Tomás de Celano explicava que Francisco “tinha tão vivas na memória a humildade da Encarnação e a caridade da Paixão que lhe era difícil pensar noutra coisa”. E o presépio “tornava mais visível a humildade do Filho de Deus e de sua Mãe, ‘a Virgem pobrezinha, que fez irmão nosso o Senhor de toda a majestade’”, como dizia o próprio Francisco de Assis.

Já existiam, antes, outras representações do nascimento de Jesus: frei Lopes Morgado, franciscano capuchinho, cita (Presépios em Barro, ed. Museu da Olaria de Barcelos) vários exemplos, só em Roma: um sarcófago de 343, que hoje se pode ver no museu da Basílica de São João de Latrão, no qual se reproduz o Menino deitado num berço de palha, com um boi e um jumento ao lado; representações da adoração dos magos em várias catacumbas; e um impressionante conjunto de mosaicos, na Basílica de Santa Maria Maior, retratando episódios ligados ao nascimento de Jesus.

Na noite de Natal de Greccio, o Poverello queria ligar o mistério da Natividade à vida quotidiana e, ao mesmo tempo, vincar a pobreza que envolveu o nascimento de Jesus. De tal modo o fez que o tornou ainda mais pobre. O evangelho segundo S. Lucas conta que a mãe “envolveu” o menino em panos, recostando-o “numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria”. No presépio de inspiração franciscana, o bebé está desagasalhado, quase desprotegido.

Esse modo de representar perdurou, quase em exclusivo, até há bem pouco tempo – inclusive nos grandes presépios barrocos portugueses. Só nas últimas décadas a recriação de artistas diferentes deu outras dimensões ao presépio. De comum a todas elas, o barro, a pedra ou a madeira modelam, como em Francisco, a ternura de Deus.

No livro de Isaías, um dos textos mais lidos durante o Advento, insiste-se várias vezes na ideia de Deus como um pai que conhece, ama e vai ao encontro dos seus filhos. “Volta-te para nós, por amor dos teus servos (…) Vais ao encontro daquele que pratica o bem com alegria e se recorda de ti seguindo os teus caminhos.” (Isaías 63, 17 e 64, 4)


Um presépio para a subsistência
Entre as novas representações do presépio, a recriação feita desde há quatro décadas pelas Irmãzinhas de Jesus destaca-se pela intencionalidade das figuras. O inspirador desta congregação tinha uma espiritualidade franciscana: Charles de Foucauld, que foi beatificado em 2005, viveu no início do século XX no deserto argelino, entre os tuaregues, acabando assassinado. Nas imagens do presépio, criado há quatro décadas por Jacqueline Suzanne, escultora que entretanto integrou a congregação, exprimem-se esses traços: o Menino, de mãos estendidas como quem se dá, mostra um sorriso aberto; José, ajoelhado, evidencia a confiança para lá da dúvida; Maria, também de joelhos, abre as mãos entregando o bebé. Os olhares, orientais, remetem para a Ásia onde Jesus nasceu. O presépio, hoje recriado a partir de moldes e feito em bairro, é um dos trabalhos artesanais que garante às Irmãzinhas de Jesus a sua subsistência.


Poema - Non tendes cama bom jesus não (autor anónimo)

Non tendes cama bom jesus não
non tendes cama senão no chão
sendo filho de deus eterno
non tendes cama senão de feno
sendo vos deus humanado
nas palhas estais lançado
[Non tendes cama bom jesus não
non tendes cama senão no chão]
(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público)

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