segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Calendário de Advento (7) - Quando uma criança aclamou para bispo o cônsul Ambrósio

Aclamado por uma criança, segundo reza a lenda, o então governador de Milão foi escolhido para bispo pelos cristãos da cidade, que queriam alguém capaz de apaziguar as tensões em que haviam mergulhado. Ambrósio destacou-se pela proximidade com que exerceu o cargo, pelos hinos que compôs, pela defesa que fez da propriedade universal dos bens e da autonomia entre a Igreja e o Estado. Erasmo definiu o seu estilo como inimitável.

(Ilustração: Santo Ambrósio, mosaico na Basílica de Sant'Ambrogio, em Milão)

“Ambrósio, famoso entre os melhores em toda a terra, teu devoto adorador, cujos discursos naquele tempo distribuíam ao teu povo zelosamente a flor do trigo, e a alegria do azeite, e a sóbria ebriedade do vinho.”
(Santo Agostinho, Confissões, Livro V, XIII, 23)


Conta a lenda que terá sido uma criança a gritar: “Ambrósio bispo!” Milão vive tempos conturbados, no Outono de 374 (ou de 373), após a morte do bispo Auxêncio. O então cônsul Ambrósio preocupa-se com a possibilidade de conflitos. Contra o uso da época, em que os bispos são escolhidos pelos cristãos de cada cidade, Auxêncio tinha sido escolhido e imposto, duas décadas antes, pelo imperador. Mas o bispo aderira ao arianismo, a corrente que contestava que Cristo fosse Deus. Com isso, provocara divisões entre os cristãos da cidade.

Estes reúnem-se na catedral para escolher o sucessor do bispo ariano. Por precaução, Ambrósio intervém entre os partidários de Auxêncio e de Dionísio, o anterior bispo. É então que alguém grita “Ambrósio bispo!” Rapidamente os dois grupos o aclamam, vendo no cônsul alguém capaz de pacificar as tensões existentes.

O governador, então na casa dos 40 anos, tenta resistir ao voto: nem sequer é baptizado, embora tenha recebido uma educação cristã no seio da família e tenha a irmã mais velha, Marcelina, consagrada à vida religiosa. Acaba por ceder, convencido que o povo falara por Deus. Pede para ser baptizado e só dias depois é consagrado bispo.

Ambrósio nasce provavelmente em Trier (no actual Oeste da Alemanha, próximo do Luxemburgo), entre 334 e 340. O pai era um funcionário importante do império na Gália. O futuro bispo de Milão passa por Roma, onde estuda retórica, latim e grego, além de direito e música. Após vários cargos como funcionário administrativo, é nomeado, em 370, como cônsul da região de Emília Liguria.

Quando é escolhido para bispo, oferece os seus bens à Igreja e inicia estudos de teologia com Simpliciano, que mais tarde lhe sucederá no lugar. Como gesto de reconciliação, chama para colaboradores mais próximos membros do clero que tinham sido ordenados por Auxêncio.

Ambrósio irá destacar-se rapidamente pela proximidade com que exerce o seu cargo, pelos muitos textos que dirige aos cristãos, pelos hinos litúrgicos que compõe, por propor uma forma de cantar os salmos com ritmo alternado – que se mantém até hoje. Entre os seus 37 títulos, estão discursos e homilias, obras sobre a Bíblia, moral e dogmática, comentários a escritores gregos cristãos (Orígenes, Basílio) ou a autores clássicos (Virgílio, Cícero, Flávio José). Erasmo definirá o seu estilo como inimitável.

Nos seus escritos, Ambrósio condena as profundas desigualdades sociais, defendendo a posse comum dos bens e o seu usufruto privado; e afirma, num contexto de polémicas, a doutrina do pecado original, depois aprofundada por Agostinho – que, quando se convertera, pedira a Ambrósio para o catequizar e baptizar, o que acontece em 387.

O bispo afirma ainda a autonomia de ambos os poderes, nas relações entre Igreja e Estado, e a colaboração em matérias de interesse comum, além da supremacia da lei moral. Na época, começa a afirmar-se o poder do Imperador sobre a nova religião. Em 390, o bispo fará mesmo com que o imperador Teodósio peça perdão público por uma carnificina por si ordenada em Tessalónica.

Ambrósio, cuja festa é hoje assinalada na liturgia católica, morre a 4 de Abril de 397. Num dos seus hinos, escrevera: “Ó Deus, criador de todas as coisas,/ tu que governas o firmamento, vestindo/ o dia, com a luz formosa,/ a noite, com a graça do sono,// para que, aos membros em repouso, o descanso/ os devolva ao exercício do trabalho,/ e alivie as almas cansadas,/ e liberte da mágoa os que estão tristes.”


Uma liturgia própria
No seu livro De Sacramentis, Ambrósio escreve: “Em todas as coisas desejo seguir a Igreja romana, mas também nós hominis sensum habemus.” Que é como quem diz, nós também temos o sentido dos ritmos humanos. Tal é o caso da liturgia ambrosiana, que criou ritos, orações, hinos, modos de celebrar a fé próprios, na maior parte dos casos redigidos por Ambrósio. Como o facto de o Advento ter seis semanas, e não quatro como acontece no rito romano. Alguns dos hinos compostos por Ambrósio ainda hoje são utilizados. É o caso das celebrações Santambrosianas 2005, que todos os anos decorrem em Milão e durante as quais o actual acrcebispo, cardeal Dioniggi Tettamanzi, sucessor de Ambrósio na Sé de Milão, continua a seguir o costume de dirigir uma mensagem à população da cidade, que pode ser lida no sítio internet da diocese. Esta iniciativa segue a tradição instaurada pelo bispo do século IV e retomada pelo cardeal Giovanni Colombo, em 1974, continuada depois pelo cardeal Carlo Maria Martini, entre 1979 e 2002.


Poema - O Natal em Londres, de Almeda Garrett

QUE Natal este! — Sempre sois herejes,
Meus amigos inglezes.
Bem haja o santo padre e a sua bulla
De fulminante anathema,
Que excommungou estes ilhéos descridos!
Oh! nunca a mão lhe dôa.
Vêr na minha catholica Lisboa
As festas de tal noite!
Sinos a repicar, moças aos bandos
C’a bem-trajada capa,
E o alvo-teto lenço em côca airosa,
D’onde um par de olhos negros
Dão as boas festas ao vivaz desejo
Do tafulo devoto
Que embuçado accudiu no seu capote
A’ pactuada egreja!
Natal da minha terra, que lembranças
Saudosas e devotas
Tenho de tuas festas tam gulosas,
E de teus dias santos

Tam folgados e alegres! Como vinhas
Nos frios de Dezembro
De regalados fartes coroado
Aquecer ‘corpo e alma
C’o vinho quente, c’os mechidos-ovos,
E farta comezana!
E estes excommungados protestantes,
(Olhem que bruta gente)
Sempre casmurros, sempre enregelados,
Bebendo no seu ale,
E tasquinhando na carnal montanha
Do beef cru e insipido!
Pois os Chistmas-pyes, gabado esmero
De sarmatas manjares!...
Olhem estas pequenas... são bonitas;
Mas que importa que o sejam
Se das Graças donosas praguejadas,
Rusticas e selvagens,
Nem dança airosa, nem alegre jogo
De divertidas prendas
Arranjar sabem, e passar o tempo
Em honesto folguedo!
Jogar um whist morno e taciturno
Sentar-se em mona roda
Junto ao fogão, fazer um detestável
Chá preto e fedorento,
Sem ár, sem graça... — Oh madre natureza,
Quanto mal empregaste
A formosura, o mimo, as lindas cores
Que a taes estátuas déste!

Londres — Dezembro, 1823

(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público)

Sem comentários: