quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Calendário de Advento (16) - Isaías, profeta para tempos de crise

“Obra magna” entre os textos bíblicos, uma das grandes obras da literatura universal. O livro de Isaías conta a história do profeta com o mesmo nome que viveu no século VIII a.C. e que confronta reis e poderosos com a crise e a injustiça do tempo.

[Ilustração: Isaías de Miguel Ângelo, abóbada da Capela Sistina (Vaticano)]

Vou criar um novo céu e uma nova terra; (…) Alegrem-se e rejubilem para sempre por aquilo que vou criar. Olhai, vou criar uma Jerusalém cheia de alegria. (…) Construirão casas e habitarão nelas, plantarão vinhas e comerão o seu fruto.
(Isaías 65, 17-18; 21)


É três em um: “A amplitude, beleza literária e conteúdo teológico convertem o livro de Isaías numa obra magna do Antigo Testamento”, escreve o biblista catalão Francesc Ramis Darder (revista Vida Nueva, 8-10-2005). E o livro bíblico divide-se em três partes, correspondentes a outros tantos autores, épocas e contextos. A personalidade de Isaías “foi de tal modo forte, que a tradição funde na sua pessoa as três partes do livro que leva o nome de Isaías”, lê-se na introdução ao livro, na edição da Nova Bíblia dos Capuchinhos (ed. Difusora Bíblica).

De estilo “clássico e nobre”, diz o mesmo texto que o Primeiro Isaías “é uma das grandes obras da literatura universal”. E acrescenta: “O autor é um grande poeta que usa a lei das assonâncias e sabe tirar partido dos sinais dos tempos. É um grande teólogo da História, que fala através de símbolos e metáforas com uma carga emotiva e apelativa muito profunda.”

Que profeta é este? No conceito bíblico, profeta é aquele “que anuncia diante doutras pessoas alguma coisa da parte de Deus”, explica o biblista basco Jesus-Maria Arsumendi (Primeiro Isaías, ed. Difusora Bíblica).

O Primeiro Isaías (que abrange até ao capítulo 39 do livro bíblico) nasce à volta do ano 760 a.C. e vive no século VIII a.C., na época de Ozias, Jotam, Acaz e Ezequias, reis de Judá. Deveria ser de família nobre, talvez mesmo próxima dos reis. Homem culto, a sua acção situa-se num tempo de crise e profundas tensões entre reinos vizinhos. Judá está entalado entre o Egipto e a Assíria, ao qual presta vassalagem. O Segundo Isaías é do tempo do exílio na Babilónia, onde os hebreus mantinham a esperança do regresso. O Terceiro Isaías fala do pecado do povo e de Deus que, apesar disso, não abandona a aliança.

Que profeta é este, afinal? Isaías chama a atenção dos reis e avisa contra perigos de decisões injustas: “Ai dos que decretam leis injustas e dos que redigem prescrições opressoras, dos que afastam os pobres do tribunal, e zombam dos direitos dos fracos do meu povo, fazendo das viúvas a sua presa e roubando os bens dos órfãos!” (10, 1-2)

Isaías é, também, o profeta que recorda que o povo se aproxima de Deus “só com palavras” e que o honra “só com os lábios”, pois o culto que presta “é apenas preceito humano e rotineiro”. A mensagem de Isaías é ainda apropriada pelos cristãos, de modo especial no tempo de Advento, como antecipação do nascimento de Jesus Cristo, como o libertador das injustiças contra as quais o profeta se manifesta.

No capítulo 11, anuncia-se esse “reino messiânico” de paz e justiça: “Então o lobo habitará com o cordeiro,/ e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito;/ o novilho e o leão comerão juntos,/ e um menino os conduzirá. (…) Não haverá dano nem destruição em todo o meu santo monte.”


O Segundo Isaías
O chamado Segundo Isaías (os capítulos 40 a 55) terá sido escrito por volta do ano 540 a.C., por um autor que viveu o exílio dos judeus na Babilónia. Ou seja, foi escrito dois séculos depois da primeira parte. Mas insere-se nos objectivos do livro bíblico: a de narrar as infidelidades do povo judeu à aliança com Deus, a sua posterior conversão durante e após o exílio, acabando a manifestar perante todos os povos a glória divina, como explica Francesc Ramis Darder (Vida Nueva, 19-11-2005). Incluem-se nestes capítulos alguns dos mais belos textos, em poesia, do livro de Isaías, como os “cânticos do servo”. Um deles é o do capítulo 42: “Eis o meu servo, que Eu amparo,/ o meu eleito, que Eu preferi./ Fiz repousar sobre ele o meu espírito,/ para que leve às nações a verdadeira justiça. (…) Eu, o Senhor, chamei-te por causa da justiça,/ segurei-te pela mão;/ formei-te e designei-te como aliança de um povo/ e luz das nações;/ para abrires os olhos aos cegos,/ para tirares do cárcere os prisioneiros,/ e da prisão, os que vivem nas trevas.


Poema - Loa, de Vitorino Nemésio

Meu Menino Jesus dos triguinhos no prato,
Não enxugues a tua lágrima de vidro,
Não apagues a tua estrela de prata suspensa no quarto ainda morno,

Não deixes envelhecer os velhos tios de retábulo
Ajoelhados em torno:
Deixa estar as palhinhas urinadas no estábulo,
Que a chuva cheira bem e o pão tufa no forno.
Doira, Menino Jesus, aquele milho amarelo
Que o Joaquim Pacheco secou na escuridão do seu muro,
E manda um navio de nevoeiro
Ao poeta que embarcou à noite no Funchal
Deixando o lenço de sua Mãe molhado no último adeus.
Anda, Menino Jesus, e não me queiras mal
Se eu te disser que assim é que te sinto Deus.
Manda o navio de nevoeiro
Pela primeira vaga que vires redonda e rebentada:
Tua mão outra vez a atira contra a noite,
Como se não tivesse batido nessa grande praia parada.
E deixa as minhas faltas à missa,
Esquece os pontos fracos da minha velha teologia,
E o orgulho, a razão, o materialismo passageiro...
Mandes tu pelo mar o navio de nevoeiro!

(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público)

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