quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Calendário de Advento (24) - Jesus, a fragilidade de Deus

Para os cristãos, Jesus Cristo é o próprio Deus que se torna homem, adoptando assim a fragilidade própria da condição humana. Essa mensagem prolonga-se no discurso e no agir de Jesus, culminando no Sermão da Montanha. Uma inversão da pirâmide.


Ilustração: Mestre Francke, de Hamburgo (1380-1430), Natividade (Museu Nacional e Cívico de S. Mateus, Pisa, Itália )


“Enquanto um silêncio profundo envolvia todas as coisas e a noite ia a meio do seu curso, a tua palavra omnipotente veio do alto do céu, do teu trono real.”
(Livro da Sabedoria 18, 14-15)


Simone Weil (1909-1943), a filósofa judia que se aproximou do cristianismo, escrevia (Espera de Deus, ed. Assírio & Alvim): “O amor divino atravessou a infinidade do espaço e do tempo para vir de Deus até nós.”

Esta é a afirmação central do Natal: para os cristãos, Jesus Cristo é o próprio Deus que se torna humano, pela palavra. “Nasceu o Verbo eterno sem começo,/ O Criador do homem fez-se homem”, canta um hino da Liturgia das Horas, rezado no dia de Natal. Uma ideia inspirada no belo poema com que se inicia o Evangelho de S. João (1, 1-2 e 14): “No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus;/ e o Verbo era Deus./ No princípio Ele estava em Deus./ E o Verbo fez-se homem/ e veio habitar connosco.”

O nascimento de Jesus acontece na fragilidade: entre os mais pobres e para todos. Daí que a narrativa do seu nascimento, segundo S. Lucas, fale dos pastores, desprezados no tempo, e dos magos, estrangeiros que vieram a Belém adorar o Menino.

Em Jesus, é o próprio Deus que nasce frágil. Tal como a humanidade. Escreve o teólogo italiano Domenico Pezzini (O Tesouro e o Barro, ed. Paulinas): “Somos criaturas frágeis, isto é, no sentido etimológico do termo, somos coisas que ‘podem quebrar-se’ e que, de facto, continuamente se partem. (...) É algo que nos marca dolorosamente e que não podemos ignorar. (...) Em nós está a força da criatividade que nos aproxima de Deus, como também está em nós uma radical fragilidade que nos leva à nossa origem e ao nosso destino; pois vimos da terra e a ela voltaremos.”

Pezzini acrescenta: “O que o Natal proclama bem alto e com alegria é que Deus veio até nós através da parte que, em nós, parece mais afastada d’Ele, que parece exactamente o contrário da própria ideia de divindade, a nossa fragilidade.” Mensagem “explosiva”, essa fragilidade torna-se “princípio fundamental” do agir de Jesus, torna-se “caminho de salvação”.

A mensagem que Jesus anunciará retoma, de novo, essa inversão da pirâmide. Os marginais e os estropiados “têm, aos olhos de Deus, tanto valor como os que respeitam escrupulosamente os seus mandamentos, recitam diariamente as suas preces e fazem oferendas ao Templo”, escreve Henri Tincq (Os Génios do Cristianismo, ed. PUBLICO/Gradiva).

Este modo de agir culmina no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os pobres de coração, porque é deles o reino de Deus; bem-aventurados os que choram, porque serão consolados; bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados; bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus; bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus; bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque será deles o reino dos céus.” (Evangelho de S. Mateus 5, 3-10).

No livro Em Ti, a Paz do Coração, escreve o irmão Roger, de Taizé: “Jesus, filho da Virgem Maria, no Natal tu ofereces-nos a mensagem de alegria do teu evangelho. Quem escuta, quem acolhe os dons do Espírito Santo, tanto de dia como nas vigílias da noite, descobre que tem tudo, com uma fé bem pequena, com quase nada.”


Pelo logos, a mais sublime das sabedorias
Um dos mais belos textos da Bíblia cristã, o prólogo do Evangelho de S. João fala de Jesus como o Verbo de Deus: “No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio Ele estava em Deus. Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência. Nele é que estava a Vida de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos homens.” Jesus nunca falou de si mesmo como o Verbo, recorda Jacques Guillet (Jesus Cristo no Evangelho de João, ed. Difusora Bíblica). Mas o evangelista adopta essa designação, do grego logos, que significa a palavra. Ao longo da história judaica, tinha sido pela palavra que Deus se comunicara a Abraão, Isaac, Jacob, Moisés, David, aos profetas… Essa palavra comunicava, assim, “a mais sublime das sabedorias”, escreve Annie Jaubert (Para Ler o Evangelho Segundo S. João, ed. Difusora Bíblica) e “se Jesus é a Palavra, é também a Sabedoria”, acrescenta Guillet. Para os cristãos, e com Jesus, é essa mesma Palavra que assume forma humana.


(Para a realização desta série, em 2005, foi importante a colaboração de: padre José Tolentino Mendonça, frei Lopes Morgado, Alfredo Abreu, Silas de Oliveira, pastor José Leite, Alberto Teixeira, Esther Mucznik, Samuel Levy, Ashok Hansraj, Paulo Borges, Ana Maria Jorge e padre João Eleutério)


Poema - Litania para o Natal de 1967 [e para o Natal de 2009], de David Mourão-Ferreira

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um fogão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos vir pedir contas do nosso tempo

[In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público]

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