Na crónica de hoje no Público, Frei Bento Domingues fala do Advento, da relação com o tempo e dos tempos de crise que vivemos (a foto é retirada daqui).
1. O tempo é sempre misterioso. Nele nos realizamos, nele nos perdemos, está sempre a vir e sempre a ir não se sabe para onde. Tem dado muito que fazer aos físicos e aos filósofos, mas quando se abandona a reflexão filosófica, resvalamos para a banalidade. Num encontro ou numa conversa sem assunto ou para evitar assuntos melindrosos, “fala-se do tempo” que faz: do sol, da chuva e do vento, do frio e do calor.
O Novo Testamento (NT), no estado em que o conhecemos, foi escrito em grego e aproveitou a boleia da tradução da Bíblia para o grego, feita em Alexandria, antes do movimento cristão, ficando conhecida como “A Versão dos Setenta” (sábios). Contra o eterno retorno do mesmo, manteve a concepção linear do tempo, um sentido positivo para a história colectiva e individual da aventura humana, apoiada na fidelidade de Deus às suas promessas, apesar de todas as catástrofes.
São essencialmente três as noções de tempo que tecem os textos do NT. O tempo-duração (aiôn) designa a experiência da continuidade da vida, desde o nascimento até à morte. Ao incluir uma Presença divina no fluxo do tempo, sugere algo de eterno, “pelos séculos dos séculos”. O tempo-sucessão (khronos) designa um espaço determinado de tempo, mais breve ou mais longo, delimitado, “naquele tempo…”. O tempo-qualificado (kairos) significa um ponto crítico ou o bom momento, o tempo favorável de que é preciso tirar partido, a ocasião a não perder, a salvação. Só com vigilância e oração é possível reconhecer os “sinais do tempo”.
Apesar disso, o começo (arkhe) e o fim (telos) são as referências supremas do tempo-qualificado. Permitem unificar, sob a acção de Deus criador e juiz, a multiplicidade sucessiva das gerações humanas. Com Cristo, no entanto, “o fim dos tempos veio até nós”. Daí que o verdadeiro tempo seja “hoje”, o toque do eterno na sucessão dos tempos.
2. Quando, no Domingo passado, destaquei, na Missa, que estávamos a começar o Advento, um miúdo – que não aprecia o retorno do mesmo – lembrou-me que eu já tinha dito isto no ano passado. Esta observação crítica levou-me aos sermões de S. Bernardo (século XII) que fala de um tríplice Advento. Entre a primeira e a segunda vinda de Cristo, entre o Natal e o fim do mundo, o Senhor da história está sempre a vir até nós na sua palavra, nos sacramentos, nos acontecimentos, na voz da consciência. Pelo seu Espírito, faz da nossa vida a sua verdadeira e permanente morada (Jo 14, 23). Neste sentido, a “Parusia”, a presença do Senhor que vem, está sempre a acontecer: é Aquele que vem, que veio e que virá.
Este vocabulário tem vantagens e inconvenientes. Vantagens, ao dizer que não estamos ligados a um Deus parado numa vida parada, em clausura, mas no movimento do mundo. Inconvenientes porque, na vida, nem tudo depende só de Deus que não se sente nada honrado com a desvalorização da criatividade humana.
3. O Advento, preparação do Natal, começa mais cedo nos centros comerciais do que nas Igrejas. Este ano, afectado pela crise mundial que lançou milhões no desemprego, não se fala tanto de febre consumista, mas da urgência de solidariedade que ainda não conseguiu encher de vergonha aqueles que se enchem com a crise e nem levar os gestores da banca e das empresas privadas e públicas a repartir os seus salários escandalosos.
Ao dar corpo à esperança, a solidariedade faz parte da luta contra o desespero, abre o futuro. Não se perde em discussões estéreis e exibicionistas de prós e contras nem na contabilidade da crescente desgraça que esquece a miséria em que os mais velhos nascemos. Certos meios de comunicação estão tão marcados pelo pensamento binário, de ataque e defesa, que perderam a capacidade de olhar para aquilo que, no presente, em vários domínios, já anuncia outras possibilidades de futuro, o advento do novo, do que nunca existiu.
O Advento é o alimento da esperança porque não nos deixa atolados na situação presente. Convoca as energias escondidas e recalcadas pela exclusiva exibição quotidiana do que há de pior nas pessoas e na sociedade. Neste sentido, os antigos textos do profeta Isaías, lidos nas celebrações da passada semana, podem parecer delirantes. Falam da conversão de espadas em relhas de arado, do lobo a viver com o cordeiro, do jantar preparado para todos os povos, enxugando as lágrimas e destruindo a morte para sempre. As palavras não dizem só o que é. Alimentam-se do desejo, do sonho, das possibilidades mais reais do que as reduções ao puramente empírico.
Pode parecer escandaloso que, no Advento, a Igreja mantenha uma semana consagrada à exaltação da alegria sem carpideiras. A concepção cristã da alegria resulta da recusa da indiferença e da opção pela compaixão activa. O caminho cristão não é o da dor e do sofrimento, mas do alívio da dor e do sofrimento. É sempre um cuidar de.
A alma do Advento é a fé de quem não se resigna, o amor de quem acredita na solidariedade, a esperança de quem, mesmo perante o horizonte mais escuro, resiste, mas não dispensa a companhia dos poetas, dos sonhadores e da música.
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