Enchem-se de luz as cidades, acendem-se velas em casa, cintilam lâmpadas coloridas alegrando ruas e lojas. Passeiam-se crianças e adultos a ver iluminações de Natal, fazem-se romarias aos centros urbanos onde se concentra o bulício e a luminosidade. A luz, um dos mais profundos símbolos cristãos, aparece mais intensamente como sinal de que o tempo natalício está à porta.
(Ilustração: Ilda David', Moisés junto da sarça ardente; in Bíblia Ilustrada, tradução de João Ferreira d'Almeida, edição do texto de José Tolentino Mendonça; ed. Assírio & Alvim/Círculo de Leitores)
“O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; e aos que jaziam na sombria região da morte surgiu uma luz.”
(Evangelho de S. Mateus 4, 16)
Santa Luzia é hoje festejada no calendário católico e pelos protestantes do Norte da Europa. Mártir, padroeira dos oftalmologistas, a sua história – para lá do nome, que deriva de luz – tem pouco a ver com a cura da vista. Viveu em Siracusa, no final do século III, era muito bela e ajudava os pobres dando-lhes comida. Entre os pretendentes, um jovem nobre insistia em casar com ela, o que ela recusava. O frustrado noivo ter-se-á vingado denunciando a fé cristã de Luzia e provocando o seu martírio.
No domínio da lenda está a história dos olhos. Antes de morrer, Luzia é inquirida sobre a razão de não querer casar com o nobre. Ela pergunta, por sua vez, o que via o rapaz em si. O prefeito Pascásio, que a interroga, terá respondido: “Os teus olhos brilham como duas estrelas e encantam como duas pérolas.” A jovem pede um prato. Bruscamente, tira os próprios olhos, colocando-os na bandeja para que fossem entregues ao rapaz.
Luzia renuncia à vista, mas não à fé. Se a lenda tem um sentido, ele pode ser o de dizer que a experiência da fé é, por vezes, a de atravessar as próprias sombras: “Visita fulgurante do amor de Deus, o Espírito Santo atravessa cada ser humano como luz que brilha na sua própria noite”, escreve o irmão Roger, de Taizé (Deus só pode amar, ed. Gráfica de Coimbra).
Paradoxal? A dúvida, a incerteza, foi o cadinho onde se amassaram experiências de fé como as de S. João da Cruz, Dostoievski ou Teresa de Lisieux. “Esta eterna fonte está escondida/ neste tão vivo pão pra nos dar vida,/ mesmo se é noite”, escreve João da Cruz no “Cantar da alma que rejubila por conhecer a Deus pela fé” (Poesias Completas, tradução de José Bento, ed. Assírio & Alvim). Os discípulos de Jesus têm, após a ressurreição, experiências de “frustração dos sentidos: aquilo que viram não era o que esperavam ver, não estavam preparados para a surpresa”, nota Domenico Pezzini (As Feridas que Curam, ed. Paulinas). Por vezes, a luz opõe-se à noite e às trevas. “Se me envolve a noite escura/ e caminho sobre abismos de amargura/ Nada temo porque a Luz está comigo”, canta um dos mais belos hinos da Liturgia das Horas.
Luz e noite confundem-se, a luz está na noite. Etty Hillesum, judia deportada que morreu em Auschwitz e escreveu um diário, registava, em 26 de Agosto de 1941: “Há em mim um poço muito profundo. E nesse poço está Deus. Às vezes, consigo chegar a ele, mas o mais frequente é que as pedras e escombros obstruam o poço e Deus fique sepultado. Então, é necessário voltar a trazê-lo à luz.” (Etty Hillesum – Un Itinerário Espiritual, ed. Sal Terrae, Santander)
A luz é o início, está presente desde o primeiro dia da criação do mundo: “Deus disse: ‘Faça-se a luz.’ E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas.” (Génesis 1, 1-5). É uma luz – a estrela – que anuncia o nascimento de Jesus. Experiências de luz são a da transfiguração e da ressurreição de Cristo. Paulo converte-se depois de uma intensa luz o fazer cair do cavalo. A libertação da humanidade é antecipada, no evangelho, como uma luz que “iluminará os que se encontram na escuridão e na sombra da morte e guiará os [seus] passos pelo caminho da paz” (Lucas 1, 79). A luz é identificada com o próprio Cristo: “O Verbo era a luz verdadeira que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina.” (João 1, 9).
Esta luz é amor que arde e tem que se ver. Escreve Santo Agostinho, nas Confissões (Livro XIII, XVIII, 22): “Assim, Senhor, assim, peço-te, (…) nasça da terra a verdade, e a justiça olhe do céu, e façam-se luminares no firmamento. Partamos o nosso pão para o que tem fome e levemos para nossa casa o pobre sem abrigo, vistamos o nu e não desprezemos os familiares.”
Dez milhões de estrelas para a noite de Natal
Dez milhões de estrelas, pede a Cáritas Portuguesa para a noite de Natal. A iniciativa, iniciada há vários anos, pretende que cada pessoa acenda uma vela à janela ou varanda de sua casa. O objectivo: “Contribuir para o desenvolvimento de uma consciência e cultura que afirmem o diálogo e a compreensão, como caminho único para a superação de conflitos e condição para o desenvolvimento dos povos”. Daí a proposta “10 Milhões de Estrelas – um gesto pela Paz” que a Cáritas promove, a nível internacional, e também em Portugal. Em todo o lado, a Cáritas quer que apareçam “milhares de velas” a “aquecer a noite, como sinal da mesma esperança e do mesmo compromisso”. Até dia 24, as Cáritas de todas as dioceses portuguesas estão entretanto a realizar várias iniciativas de apoio a pessoas mais desfavorecidas. Os fundos resultantes da operação – nomeadamente a partir da venda de velas – reverterão para o apoio às famílias desfavorecidas e atingidas pela crise.
Poema - Natal africano, de Cabral do Nascimento
Não há pinheiros nem há neve,
Nada do que é convencional,
Nada daquilo que se escreve
Ou que se diz... Mas é Natal.
Que ar abafado! A chuva banha
A terra, morna e vertical.
Plantas da flora mais estranha,
Aves da fauna tropical.
Nem luz, nem cores, nem lembranças
Da hora única e imortal.
Somente o riso das crianças
Que em toda a parte é sempre igual.
Não há pastores nem ovelhas,
Nada do que é tradicional.
As orações, porém, são velhas
E a noite é Noite de Natal.
(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público)
1 comentário:
Gosto deste calendário, para além do dia 25, este dia 13 de Santa Luzia, dia em que a uma Quinta-Feira chuvosa e fria nasci; gosto deste hino, para além de alguns outros..."É belo o rosto claro da manhã...acorda-me, meu Deus, cada manhã, até que eu saiba amanhecer seguro do teu amor, no dia sem ocaso" da Oração oficial da nossa Igreja quase desconhecida da maioria.
Obrigada por me ajudar a caminhar ao encontro do Menino neste Advento.
Beijo
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